Quaderns de Psicologia | 2025, Vol. 27, Nro. 2, e2165 | ISSN: 0211-3481 |
https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.2165
Institutionalized Elderly People and Meaning Process regarding Institutionalization
Maria Eduarda Araújo Gonçalves
Universitat Digital Europea
Maria Isabel Pedrosa
Universidade Federal de Pernambuco
Renata Lira dos Santos Aléssio
Universidade Federal de Pernambuco
Resumo
Devido à ausência da família e de políticas públicas eficazes, muitas pessoas idosas brasileiras passam a viver em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs). A transição do lar para uma ILPI exige recursos intra e interpessoais para novos ajustes no curso da vida. Este estudo investigou as significações sobre a institucionalização de idosos residentes em uma ILPI, analisando seus processos de transição e adaptação. Foram examinados relatos autobiográficos de 10 participantes, que compartilharam suas histórias de vida. A análise, inspirada na fenomenologia, identificou singularidades e aspectos comuns na experiência de institucionalização. Os resultados apontam que a decisão de viver em uma ILPI está frequentemente relacionada à necessidade de companhia. Observou-se também uma mudança na percepção da instituição: de um local associado ao abandono para um espaço seguro e protegido. O estudo contribui para reflexões ampliadas sobre os desafios e significados da institucionalização de idosos no Brasil.
Palavras-chave: Pessoa idosa; Institucionalização; Autobiografias; Curso de vida
Abstract
In Brazil, in the absence of family and effective public policies, elderly people often move to Assisted Living Facilities (ALF), requiring intra and interpersonal resources for this transition. This study investigates the meanings of institutionalization for elderly ALF residents and examines the transition process and its adjustments. Autobiographical accounts from 10 participants were analyzed, with a phenomenological approach identifying both individual experiences and shared aspects of institutionalization. The findings reveal that reasons for institutionalization are tied to the need for companionship and a shift in the perception of ALFs—from places associated with abandonment to safe and protected environments. This research contributes to a broader understanding of the challenges and significance of institutionalization in later life stages, encouraging reflection on the topic and its implications for elderly care in Brazil.
Keywords: Elderly; Institutionalization; Autobiography; Life course
A maioria das pessoas idosas brasileiras não tem acesso a políticas públicas efetivas (Berzins et al., 2016), dependendo dos cuidados da família, a principal responsável pelo bem-estar dessa população. As Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs), conhecidas outrora por asilos e tendo sua fundação na filantropia, são os dispositivos que lidam majoritariamente com o cuidado de pessoas idosas no Brasil, quando falta a família. As ILPIs são definidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, responsável pelo seu regulamento no Brasil, como “instituições governamentais ou não governamentais, de caráter residencial, destinada ao domicílio coletivo de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, com ou sem suporte familiar, em condição de liberdade e dignidade e cidadania” (Anvisa, 2021, p. 2). Há uma grande disparidade regional no Brasil na oferta e na qualidade de serviço das ILPIs; a região Sudeste é a que concentra o maior número de instituições e com maior qualidade (Guimarães et al., 2023).
Observamos que a maioria das pesquisas sobre estas instituições são da área da Enfermagem e Gerontologia; pouco se produz na Psicologia brasileira e pouco se privilegia a experiência singular e os significados atreladas à institucionalização (Brito e Moreira, 2018). As publicações tratam dos motivos para a procura de uma ILPI, que derivam principalmente de comprometimentos físico e mental e consequente dependência para atividades de vida diária (AVDs), conflitos familiares e/ou inexistência de rede de suporte, além de falta de condições econômicas que viabilizem a permanência no lar (Araújo et al., 2016; Dutra e Rodrigues, 2021; Lini et al., 2016; Teixeira e Cavalcante, 2024).
Consideramos que a entrada na instituição pode caracterizar-se como um marco importante na vida da pessoa idosa, podendo ser compreendido a partir do conceito que Tania Zittoun (2009) define como transição: o processo em que se produzem respostas e ajustes a uma situação estranha, nova, e que pode ser representada como uma ruptura na trajetória do sujeito. A institucionalização parece ser uma mudança que exige das pessoas idosas recursos intra e interpsíquicos, além de ambientais, que podem ou não culminar em um ajuste positivo à nova realidade, com o desenvolvimento de novos papéis, status e relações.
Em um estudo elaborado por psicólogos portugueses a partir da perspectiva do ciclo de vida, levanta-se a hipótese de que a transição e o ajuste positivo à ILPI estão relacionados à participação da pessoa idosa na tomada de decisão de mudar-se para a instituição, aliados a um planejamento prévio. Os resultados, resguardando o contexto cultural da pesquisa, de certo modo confirmam os pressupostos, mas não sem a ressalva de que o processo é bastante idiossincrático e depende das características da instituição (Faria e Carmo, 2015).
A mudança para uma ILPI não obedece a um padrão (Dutra e Rodrigues, 2021). A pessoa idosa pode sozinha decidir pela mudança, como pode decidir com sua família. É comum ainda que algumas famílias decidam contra a vontade da pessoa idosa. Na ausência de família, em situação de vulnerabilidade ou mesmo por situações de conflito e violência familiar, o Estado pode encaminhar as pessoas idosas para ILPIs, com ou sem seu consentimento. Este processo de decisão e operacionalização da mudança deve desempenhar papel importante na significação pessoal sobre a institucionalização.
As articulações e a dinâmica da produção desses significados ocorrem em uma trama que pode ser pensada em paralelo à metáfora de rede. Esta vem sendo utilizada nas diversas ciências, apresentando como ideia central a imagem de distintos pontos, sem ordenação aparente, conectados como teias, compreendendo múltiplas articulações que se configuram de diferentes maneiras, dinamicamente, a depender do momento, do contexto e das pessoas envolvidas. São significações eivadas de experiências vividas, que tecem histórias singulares, mas intersubjetivamente compartilhadas, abertas ao mundo e a si mesmo, construídas com a compreensão da situação, mas mescladas de afetividade e emoções, assumidas na fala e no corpo de quem protagoniza o relato (Furlan, 2004; Rossetti-Ferreira et al., 2004).
A atribuição de significados assume papel central no desenvolvimento humano. Imersos em uma “malha semiótica” nos constituímos e constituímos os outros e o entorno. A materialidade das instituições e as subjetividades das relações institucionalizadas são perpassadas por uma matriz sócio-histórica. Esta é circunscrita por pessoas, espaço e tempo e, primordialmente, pelos processos de significações que daí decorrem, limitando ou possibilitando as ações dos institucionalizados (Rossetti-Ferreira et al., 2004).
Com base nesse referencial, planejamos esta pesquisa com o objetivo de investigar as significações sobre institucionalização de pessoas idosas que moram em uma ILPI e analisar a transição do lar para a instituição, seus processos e ajustes. Partimos de relatos autobiográficos que assinalam eventos que marcaram etapas ou momentos de transformações ao longo de suas vidas e que constroem histórias singulares embora compartilhadas com vivências socioculturais datadas e geograficamente circunscritas. Compreender a institucionalização de pessoas idosas, ainda que em fragmentos, é contribuir, em perspectiva, para um atendimento de melhor qualidade das suas necessidades.
Foi selecionada uma instituição privada sem fins lucrativos, gerenciada pela associação de uma igreja evangélica da cidade de Recife (Brasil), que anuiu à realização da pesquisa. A coleta de dados teve início após apreciação e aprovação do Projeto de Pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa de uma Instituição de Ensino Superior, atendendo às exigências e recomendações em vigor. Segundo o diretor, a ILPI foi fundada no ano de 1985 para atender “pessoas carentes”. Possui 44 vagas que estavam totalmente preenchidas no momento da coleta, em junho de 2018, das quais 36 eram ocupadas por mulheres. Adotaremos, portanto, o gênero feminino como padrão na escrita, tendo em vista que a população estudada é predominantemente de mulheres.
As residentes da instituição têm um perfil de baixa renda: apenas seis recebem mais de um salário-mínimo. Seis mulheres e dois homens não se casaram, nem tiveram filhos. O perfil das residentes é, em sua maioria, de mulheres idosas independentes para as AVDs. Do total, havia dois homens e quatro mulheres com quadro demencial.
A instituição tem horários fixos para visitas e para todas as refeições do dia, embora o diretor afirmasse que havia flexibilidade, principalmente no que diz respeito às visitas. Havia cultos diários que não eram obrigatórios, mas contavam com ampla adesão. Os atendimentos de saúde e demais atividades não eram fixas, uma vez que dependiam de convênios e oferta de voluntários.
Todas as residentes da ILPI que aceitaram o convite e demonstraram disponibilidade e interesse, a partir de contatos preliminares, foram incluídas na pesquisa. O critério de exclusão foi o registro no prontuário da pessoa idosa de possíveis comprometimentos cognitivos, uma vez que o procedimento de coleta exigia memória e fala preservadas e organizadas.
Em uma abordagem qualitativa, considera-se adequado um número de participantes que seja suficiente para propiciar reincidência e complementaridade das informações. Assim, não foi predeterminado o número inicial de entrevistados, com a condição de que fossem ouvidos homens e mulheres, até o ponto em que as informações parecessem “saturadas” (Minayo, 2017).
Todas as pessoas idosas consideradas aptas a participarem da pesquisa foram abordadas, direta ou indiretamente. Algumas rejeitaram, outras evitaram um contato direto com a pesquisadora principal. Por fim, foram entrevistados dois homens e oito mulheres, um total de 10 participantes com idades entre 67 e 96 anos. São dados nomes fictícios às participantes a fim de manter a pessoalidade dos resultados e sua anonimização.
O principal procedimento de coleta foi uma entrevista baseada no modelo de narrativas autobiográficas (Oliveira e Rego, 2006). Este instrumento permite que as pessoas falem livremente sobre os tópicos que julgam ser mais importantes, revelando aspectos que marcam sua história de vida e os contextos de desenvolvimento, de relações sociais, de poder e seu posicionamento geral no mundo. A instrução inicial dada à participante foi: “quero que o Sr./a Sra. me conte sua história de vida, livremente e do modo que achar que deve, destacando o que julgar importante e me indicando quando finalizar seu relato”.
O uso de narrativas autobiográficas justifica-se visto que ao narrarem suas histórias as pessoas sinalizam os pontos que significam como importantes no seu curso de vida: os pontos de viragem ou de ruptura (Oliveira e Rego, 2006). A menção sobre a mudança do lar para a ILPI já indicaria relevância do evento, sem que fosse necessária uma pergunta direta da pesquisadora, o que poderia interferir na resposta.
Deve-se considerar ainda que nas narrativas não se busca a “realidade dos fatos” ou uma “verdade”. É o que Jerome Bruner caracteriza como “indiferença factual”, lembrando ainda que “uma história é sempre a história de alguém” (1990/1997, p. 53). Importa o que as pessoas julgam importante narrar sobre suas vidas, considerando que enquanto narram, usam “filtros”, lembrando de algumas coisas e esquecendo de outras, ou selecionando acontecimentos em detrimento de outros.
Todas as entrevistas aconteceram em uma única sessão audiogravada, com duração entre 15 minutos e 1 hora e 12 minutos. Não raro, em outros momentos, as participantes voltavam a falar de assuntos que integravam seus relatos, em conversas informais, ou mesmo acrescentavam informações ao que tinham dito antes. Estas conversas não foram gravadas, mas foram registradas em um diário de campo, utilizado em todas as visitas à instituição.
Para a análise, utilizamos um procedimento de inspiração fenomenológica (Trindade et al., 2007). Nosso estudo se interessa pela investigação de aspectos particulares da experiência humana, a análise da vivência cotidiana, orientada à descoberta de significados expressos pelos sujeitos sobre suas próprias experiências (De Castro e Gomes, 2011; Furlan, 2004). Alinhado aos estudos com narrativas, o método de inspiração fenomenológica procura na própria expressão significativa dos sujeitos os temas e as generalidades sobre o fenômeno investigado, sem se preocupar com a confrontação com os fatos. Nesta análise deve-se encontrar uma variedade grande de situações, mas também um tema ou estrutura que é comum a todos os relatos (Bullington e Karlsson, 1984).
A partir do procedimento de organização de entrevistas proposto por Zeidi Trindade et al. (2007), procuramos chegar a “‘constituintes de significados’, ou seja, temas constituintes das descrições e reveladoras da ‘estrutura’ do fenômeno vivido” (Trindade et al., 2007 p. 78); a “estrutura” emerge na articulação desses constituintes e não somente na sua explicitação. Essa organização comporta algumas fases. Na primeira é realizada a transcrição integral dos relatos, inclusive de aspectos não verbais, pela própria pesquisadora, caracterizando o relato bruto da entrevista. Na segunda fase, em consonância com o que sugere Maria Cecília de S. Minayo (2012, p. 624), as transcrições passam por uma “leitura atenta, reiterativa e cheia de perguntas”, caracterizada por uma completa imersão nos dados e permitindo que se “localize temas significativos e comuns presentes na experiência vivida pelos participantes” (Trindade et al., 2007 p. 83), as chamadas unidades de significado. Estas unidades podem ser derivadas dos próprios objetivos do trabalho como também devem emergir dos relatos.
Na terceira fase, faz-se a distribuição de trechos brutos de cada uma das entrevistas nestas unidades de significado. Alguns trechos repetem-se em mais de uma unidade e esta fase serve para confirmar sua identificação, bem como revê-las e excluir algumas. A fase seguinte caracteriza-se pela padronização parcial desses trechos em terceira pessoa, sintetizando o conteúdo. Algumas transcrições literais são mantidas e aparecem na estrutura final, a história de vida, que é elaborada na quinta e última fase da análise (Trindade et al., 2007). Para este artigo, escolhemos duas unidades de significado que serão apresentadas nos resultados.
A primeira unidade de significado diz respeito aos caminhos para a institucionalização, destacando em cada uma das narrativas os acontecimentos que culminaram na entrada das participantes na ILPI. A segunda trata das significações da institucionalização, realçando singularidades das participantes, mas buscando apreender o que compartilham e, assim, ampliar a reflexão em torno da institucionalização de pessoas idosas.
Esperava-se que a institucionalização aparecesse espontaneamente nos relatos, como um indicativo de que seria um evento importante nas vidas das participantes. Assim ocorreu, com exceção de Bromélia, que mesmo depois de questionada sobre o processo não discorreu além do que lhe foi perguntado. Iniciando a análise por ela, destaca-se em seu relato várias mudanças, desde a infância com a família, comentadas em trechos como: “Então a vida da gente era assim, tanto fazia papai tá aqui como ir simbora pr’outro canto.” Até mais tarde, na sua vida profissional como empregada doméstica: “Não parava em canto nenhum. Só teve duas casa que eu parei.” (Bromélia, entrevista, junho de 2018).
Depois de aposentada, as mudanças continuaram. Bromélia morou com amigos, já que não constituiu família, em arranjos que chegaram inclusive a gerar conflitos. Ela já conhecia a ILPI e ao lembrar da possibilidade de morar nela, concluiu que: “Aqui que é o lugar de, quando a pessoa não tem família, viver. Quem tem vive, e eu que num tinha?!” (Bromélia, entrevista, junho de 2018). Ela contou com a ajuda de um pastor da igreja evangélica para conseguir a vaga, pois anteriormente já tinha se inscrito sem sucesso. No momento da entrevista, Bromélia (82 anos) estava há seis anos na ILPI.
De forma semelhante, Tulipa (80 anos) passou na vida adulta por uma série de mudanças de endereço com sua “irmã de consideração”, após a morte da tia com quem morou a vida inteira. Ela conta sobre os endereços pelos quais passou, justificando os motivos das mudanças e se divertindo ao lembrar como a irmã decidia se mudar. Em virtude de um processo de adoecimento, a irmã precisou de cuidados contínuos, divididos entre ela própria e as filhas da irmã. Considerando sua idade e que poderia adoecer também, sem ter outros familiares que pudessem assumir esses cuidados, Tulipa decidiu se mudar para a ILPI. Ela já conhecia a instituição e tinha se inscrito antes para ocupar uma vaga, a qual logrou também através de um pastor, há 15 anos.
Jacinto (75 anos) tinha mãe ainda viva e foi chamado pela tia para morar com ela e com a mãe, mas considerava que os familiares não se importavam com ele. Quando trabalhava, morava em uma pensão. Chegou a morar com uma irmã, mas não contou o porquê de ter saído da casa dela. Jacinto decidiu por conta própria morar na instituição, que já conhecia “de nome” e diz que se mudou apenas com uma sacola, há 6 anos.
Ainda dentre as participantes que não constituíram família, Rosa (67 anos) se mudou para a ILPI, porque não gostava de ficar só. Após trabalhar a vida inteira como empregada doméstica, ao se aposentar, passou a morar com uma amiga. Quando esta faleceu, recebeu o convite para morar com a nora dela. Ainda assim, passava muito tempo só e explica que tinha medo de que algo lhe acontecesse, como cair e não ter socorro imediato.
Rosa recebeu a sugestão de alugar uma casa e pagar “uma pessoa” para lhe fazer companhia, mas justificou que sua renda não era suficiente para os gastos. Assim, restou-lhe como opção a ILPI. Após visitar a casa, passou um dia de teste na instituição e concluiu: “Eu num arranjo lugar mais arranjado que esse canto… Tudo mais caro, né?” (Rosa, entrevista, junho de 2018).
Quando a entrevista foi realizada, Rosa estava na ILPI há dois meses apenas, o que provavelmente influenciou o fato de ter detalhado os aspectos da sua transição para a instituição. Ela conta sobre os itens que levou para a casa, o problema que teve com a cama e a demora para resolvê-lo, como também o conflito que enfrentava com a companheira de quarto para ter uma cópia da chave da porta.
Margarida estava divorciada, mas não teve filhos. Tinha imóvel próprio e morava só há 36 anos. Ao contrário de Rosa, gostava dessa condição e estava acostumada. Justificou sua ida para a ILPI, há 1 ano, por ter sofrido perda progressiva da visão, mesmo sendo acompanhada por uma instituição de referência em Pernambuco. O tratamento correto e os consequentes procedimentos cirúrgicos vieram tardiamente, quando pôde pagar um médico e a intervenção, momento em que já não enxergava pelo olho esquerdo. Para arcar com os custos, teve que vender seu apartamento. Margarida tem 82 anos e relata outros problemas de saúde, porém, a decisão pela mudança é atribuída à sua irmã mais nova: “Ela disse que eu não podia continuar nesse apartamento, por causa da minha idade, da artrose, do problema da vista. Ela conseguiu uma vaga aqui” (Margarida, entrevista, junho de 2018).
Petúnia (70 anos) também passou por eventos importantes antes de sua ida para a ILPI. Nesse caso, um conflito com o filho. Viúva, morava sozinha, até aceitar que o filho fosse morar em sua casa, com esposa e filhos. Para recebê-los, pediu um empréstimo bancário que repassou a ele para construir um primeiro andar na casa. Durante as obras ela alugou um outro imóvel e chegou a passar por uma cirurgia. Após 8 meses, já sem condições de continuar sozinha e manter todos os gastos, pergunta ao filho pelo fim da obra. Este diz que havia sido roubado e que a obra estava parada. a obra estava parada. Para deixar de pagar as despesas da casa alugada, Petúnia decidiu morar na ILPI onde fazia trabalho voluntário. Morou nesta instituição durante quase oito anos, até que um novo evento aconteceu — a instituição seria fechada e ela teria que se mudar em alguns meses. Sem saber em que condições estava sua casa, contou que foi chamada pelo filho para um churrasco. Este estava morando no piso térreo e a suposta obra seguia parada. Aproveitando a ocasião, Petúnia contou ao filho que não tinha para onde ir e que, de acordo com o diretor da ILPI onde morava: “abrigo da prefeitura é muito ruim, que as (pessoas idosas) que não têm família vai pra o abrigo da prefeitura” (Petúnia, entrevista, junho de 2018).
O filho então chamou a mãe para voltar para sua própria casa. Como ele não poderia sair do imóvel por falta de condições financeiras, separou um quarto para Petúnia. Sentindo-se desconfortável, acabou iniciando uma série de conflitos com o filho. Houve um rompimento definitivo entre eles, uma denúncia na Delegacia do Idoso e a consequente judicialização do processo.
Os casos de violação de direitos das pessoas idosas, e mesmo os de violência, acontecem majoritariamente no ambiente familiar (Santos et al., 2020). Mesmo com o rompimento e a judicialização, o filho de Petúnia continuou morando na casa dela com sua mulher e filhos, sem manter contato com a mãe, que relatou sofrer ao escutar a voz dos netos e não poder vê-los. Sentindo-se só e desamparada, decide sair de sua própria casa para uma ILPI, com a ajuda de um pastor. Ela completou um ano nesta instituição no período em que a coleta foi realizada.
Violeta (84 anos) também decidiu ir para a ILPI depois de enfrentar problemas com a filha adotiva, que era usuária de drogas e a roubava para manter o consumo. Antes da maioridade, a filha de Violeta passou por serviços institucionais especializados. Depois dos 18 anos, não teria mais aceito nenhum tipo de intervenção da mãe que, talvez, desconhecendo os mecanismos legais que poderiam ter lhe favorecido nesse caso, achou melhor ela mesma sair de casa: “Eu fiquei com medo, né? Assim, dela já grande, já com 18 anos” (Violeta, entrevista, junho de 2018).
Violeta contou com a ajuda de uma mulher que frequentava a mesma igreja que ela e que lhe apresentou ao diretor da instituição. A mudança, há 3 anos, foi rápida e Violeta conta como foram as questões operacionais da transição, como a venda e doação de móveis e itens pessoais no decorrer de 15 dias antes de sua ida para a ILPI. No seu relato, não inclui o que foi feito com seu imóvel, nem como ficou a filha.
Íris, Jasmin e Delfino têm filhos e não houve relato de conflitos ou rompimento com eles. Os três são viúvos, mas morar em companhia de algum dos filhos repercutia de modo diferente para cada um. Íris (75 anos) conta que sua decisão foi motivada principalmente pelo fato de que ela não queria mais ter atividades domésticas. O filho, a nora e as netas moravam na sua casa e, para ela, a nora cuidaria do filho, deixando-a livre de obrigações. O relato da transição dela para a ILPI, há oito anos, foca na resistência que encontrou na família e comunidade, ao decidir e efetivar sua mudança. O filho de Íris foi contrário à decisão, mas a nora teria exercido uma função importante de convencê-lo. A mudança teria provocado reações dos vizinhos, que culparam seu filho e nora. Para Íris, as reações estavam associadas a outra instituição filantrópica próxima à sua casa e que ela julgava ser de má qualidade. Resultou também do fato de que ela teria sido uma boa mãe e que, portanto, deveria ser também bem cuidada pelo filho. Assim, seu relato reúne pressupostos de que os filhos têm a obrigação de cuidar e de que existem instituições que podem ser locais de abandono.
Íris conta, no entanto, que os vizinhos que a visitaram surpreenderam-se com a ILPI, que seria, ao contrário da opinião inicial, como estar “no paraíso”. Tampouco ela se sente abandonada e, apesar de falar reiteradamente que prefere e é sua escolha estar na instituição, assume que pode voltar para sua casa se quiser, ou se for a “vontade de Deus”. Para ela, outro fator em favor da ILPI é o fato de estar sempre acompanhada, sendo, portanto, o caráter coletivo da instituição vivido positivamente por ela.
A participante mais velha da pesquisa, Jasmin (96 anos), morou um período sozinha depois que ficou viúva. Sua casa era própria e ela pôde contratar uma trabalhadora doméstica, mas relata que essa pessoa faltava com frequência. O filho mais velho chegou a convidá-la para morar com ele e, embora ela quisesse aceitar o convite, rejeitou, temendo que a nora não estivesse de acordo. Jasmin relatou o processo de admissão na ILPI e a dificuldade para conseguir uma vaga, contando com a ajuda de um pastor. O relato inclui ainda os detalhes da mudança, como levou sua própria cama e outros móveis para o quarto, comprados pela sua nora. Jasmin completou quatro anos na instituição.
Delfino (72 anos) justifica sua ida para a ILPI a partir da morte da esposa e porque os filhos sempre estavam ocupados e seus problemas de saúde exigiam atenção: ele tinha dificuldades para andar e falar. Apesar de possuir dois imóveis, cada um ocupado por um filho, não assumia que estes tenham a responsabilidade de recebê-lo, afirmando que o único lugar onde poderia morar seria a casa da sua mãe. Ele estava na instituição há oito meses e tem um longo histórico familiar com a igreja e a associação da igreja que mantêm a instituição.
Margarida e Rosa são as únicas que não relatam aspectos ligados à religiosidade. Os outros não só destacam a fé que têm, como indicam que compartilham religiões evangélicas; o pastor é um importante mediador para a conquista da vaga na ILPI.
Apesar de o histórico das instituições filantrópicas religiosas estar ligado à velhice pobre, incapacitada e abandonada (Camarano e Mello, 2010), observamos mudanças significativas que reverberam nessa instituição e nessas participantes. Todas elas, mesmo com algumas dificuldades e problemas de saúde, são independentes ou com grau baixo de dependência para as atividades de vida diária (AVDs) como ocorre na maioria de outras instituições filantrópicas brasileiras, que contam com proporção menor de dependentes em comparação com as instituições com fins lucrativos (Camarano e Barbosa, 2016).
Cada história está carregada de um conjunto de experiências pessoais, que caracterizam a voz narrativa de cada autor e expressam como apreendem e compreendem suas vivências. De acordo com a perspectiva da RedSig, essas vozes são singulares, pois duas pessoas, por mais que compartilhem caminhos muito parecidos, nunca ocupam o mesmo espaço temporal e discursivo (Rossetti-Ferreira et al., 2004). Observamos as singularidades de cada relato, mas fizemos um esforço para apreender o que compartilham e para realçar aspectos que ampliem a reflexão sobre institucionalização de pessoas idosas.
Se por um lado, os relatos apresentam alguns significados que já são comumente associados à institucionalização, por outro, apontam para sua ressignificação. Neste processo, devemos atentar para o conceito de matriz sócio-histórica, que compreende os elementos ideológicos, as condições socioeconômicas e políticas das participantes (Rossetti-Ferreira et al., 2004). Consideramos, portanto, o papel de instrumentos legais como o Estatuto da Pessoa Idosa, a atuação de órgãos de controle e fiscalização, o aumento de ofertas de serviços privados que agregam outro tipo de valor à modalidade, além dos novos olhares que a mídia tem lançado sobre esses espaços (Cristophe e Camarano, 2010). Todos esses aspectos contribuem para que as ILPIs se insiram em um novo paradigma de cuidados de longa duração. A partir dos relatos aqui apresentados, podemos assumir que essa mudança está em curso e é refletida nos fragmentos de significações produzidas pelas participantes.
Em maior ou menor grau, considerando as circunstâncias de suas experiências, a decisão pela mudança para a ILPI foi das participantes. Como se configura hoje a oferta e como elas relatam suas decisões, compreendemos que a institucionalização já se apresentava como uma opção. Das dez entrevistas, destacamos o relato de Íris. Pensionista, com casa própria e apoio do filho, morava em sua casa com nora e netas e, aparentemente, não teria motivos para se mudar para a ILPI, mas conta que queria um lugar que não precisasse mais exercer atividades domésticas, “porque dona de casa é muita responsabilidade” (Íris, entrevista, junho de 2018). Supõe-se que as atividades assumidas em casa eram obrigações das quais gostaria de se livrar. Por outro lado, Margarida, apesar de elencar diversos motivos de sua ida para a ILPI, atribui à sua irmã mais nova a decisão, que também conseguiu a vaga e operacionalizou a mudança.
Em outros relatos, é difícil delimitar o quanto há de opção pessoal ou se outros aspectos foram mais decisivos na institucionalização, concebendo-a como uma solução para determinados problemas como conflitos familiares, no caso de Petúnia e Violeta. A ILPI representa então, “uma alternativa de amparo, proteção e segurança, principalmente, para os que não têm família e para aqueles que experimentam uma situação de conflito familiar” (Cristophe e Camarano, 2010, p. 160). Para Bromélia, a ILPI é “lugar de quando a pessoa não tem família para viver” (Bromélia, entrevista, junho de 2018), revelando um pensamento comumente associado a estas instituições. Hoje, entretanto, ocorrem mudanças que refletem o que se segue na sua própria fala: “Quem tem vive; e eu que num tinha?!” (Bromélia, entrevista, junho de 2018). Em todo caso, conta que gostaria de ter se mudado antes para a instituição, tal como explica Violeta, que conseguiu sua vaga aos 81 anos e afirma que deveria estar na espera já aos 59, já que poderia mudar-se aos 60.
Também no relato de Íris é possível observar como um contexto macro sustenta múltiplas e antagônicas condições e discursos (Rossetti-Ferreira et al., 2004), provavelmente aqui associadas a um processo, ainda em curso, de ressignificação desses espaços. Ao encontrar resistência da família e dos vizinhos, Íris se depara com um discurso apoiado em um histórico das instituições asilares, caracterizadas como um local de abandono. A referência dela e da comunidade é a de uma outra instituição filantrópica, que, apesar de ela mesma não conhecer pessoalmente, conta: “Mas diz que naquele tempo passado, era um pouquinho difícil.” E compara: “Mas graças a Deus, aqui não, aqui é… aqui eu vivo bem.” (Íris, entrevista, junho de 2018). Até que todos conhecessem a instituição, o filho não concordava em colocar a mãe “num negócio de abrigo”, nem os vizinhos aceitavam que o filho estivesse “desprezando” a mãe.
O pressuposto de que os filhos têm obrigação de cuidar dos pais pode ser discutido ainda com base nos relatos de Delfino e Jasmin. Ambos têm filhos, não relatam situação de conflito com eles, mas têm queixas, mesmo que sutis, com relação a eles. Delfino justifica que os filhos são ocupados, mas fala sobre a “ironia” de ter um que mora perto da ILPI e não o visita, de modo que ele “depende” dos outros dois. Em decorrência de conflitos com um outro morador, ele considera a possibilidade de sair da instituição, mas julga não ter a opção de morar com os filhos.
Jasmin foi convidada por um dos filhos para morar com ele; mas rejeitou por falta de convite da nora. O seu relato indica que preferiria morar com ele e que, apesar de ter recebido positivamente, com surpresa e alívio, a notícia de que conseguiu uma vaga na ILPI, não se adaptou bem à institucionalização. Ela passa a maior parte do tempo em seu próprio quarto, pouco ocupando os espaços coletivos, mesmo nos momentos de refeição, quando todos vão até a casa principal. Jasmin também relata seu temor de “adoecer” e ter que morar na área térrea da instituição, onde vivem os mais dependentes para AVDs. De acordo com o que outras pessoas lhe contam “lá embaixo é horrível” (Jasmin, entrevista, junho de 2018), por não haver banheiros privados em cada quarto e pelas consequentes condições de higiene.
A própria possibilidade de ficar totalmente dependente de cuidados representa, por si só, um temor que se acentua na velhice, quando a incidência de doenças crônicas incapacitantes é maior. Delfino havia iniciado reposição hormonal aos 50 anos e, no momento da entrevista, contou que, mesmo com algumas dificuldades, não deixava que nenhuma cuidadora tocasse em seu corpo. Já Tulipa, 80 anos, relatou com orgulho que não precisava de ajuda nenhuma em seu cuidado, “espero em Deus que eu vá assim longos tempos, né?” (Tulipa, entrevista, junho de 2018).
O temor se associa à falta de controle sobre seu próprio corpo, a consequente dependência de outros e maior vulnerabilidade às situações de violência. Ainda que essas situações e a violação de direitos no geral aconteçam majoritariamente no ambiente familiar (Santos et al., 2020), o histórico asilar e as notícias que circulam sobre interdições de ILPIs por maus tratos exercem uma forte influência sobre a imagem dessas instituições. Para aqueles que as visitam e orientam a atenção para a área de dependentes, não se pode negar o impacto que o cenário causa.
Para as pessoas idosas independentes, alvo deste estudo, o cenário é bem diferente. Todas as dez, em maior ou menor grau, relatam receber visitas, sair da instituição sempre que querem, com ou sem companhia (aquelas que têm um maior nível de independência), e até mesmo passar noites fora. Os quartos são duplos, cada um com banheiro e com decoração e objetos pessoais de cada ocupante. Ainda assim, trata-se de uma instituição coletiva e seu funcionamento depende de algumas regras que facilitam a administração.
Margarida, por exemplo, fala dessas regras em comparação com o colégio interno que estudou, elencando esse fator como facilitador na sua adaptação. Para Rosa, ter horários definidos para as refeições é uma característica positiva. Outros participantes falam desses aspectos como parte da rotina institucional, como Tulipa que destaca as manhãs agitadas, já que é despertada por volta das 05h com os ruídos e movimentos típicos da convivência, “essas coisas que a gente não pode evitar, porque é o nosso dia a dia” (Tulipa, entrevista, junho de 2018).
Viver coletivamente, apesar de algumas dificuldades, é destacado, em geral, de modo positivo. Os significados pessoais, entretanto, são diversos. Margarida apreciava morar só, de modo que a avaliação que faz da ILPI é ambivalente: “Tô satisfeita aqui. Agora sinto falta da minha casa, né?” (Margarida, entrevista, junho de 2018). Destaca a diferença entre ter sua moradia individual e passar ao compartilhamento da vida coletiva, avaliando como positivo o fato de os quartos serem duplos e com banheiro, o que permite ainda algum nível de individualidade. Rosa poderia representar o extremo oposto. Desacostumada a morar sozinha e temendo a condição, encontrou na coletividade da ILPI um modo de sentir-se mais segura. De acordo com a trajetória das duas, compreende-se como um mesmo fator é significado tão diferentemente por cada uma delas.
As regras limitam e circunscrevem experiências; mesmo assim, o que é experienciado é diferente (Zittoun, 2016). De modo simples, pode-se dizer que o horário das refeições é rígido, mas as experiências dos participantes são diversas: uns se juntam no refeitório, outros fazem seu prato e comem em seus quartos assistindo televisão, guardam marmitas para comer em outra ocasião ou, simplesmente, não se servem, preferindo comprar sua própria alimentação.
Na avaliação positiva da ILPI, alguns relatos destacam os serviços de limpeza e cozinha, que as deixam livres dessas tarefas e com mais tempo, seja para descansar, para fazer atividades de lazer ou mesmo outros deveres. Violeta conta: “Eu faço exercícios, eu faço hidroginástica, saio para resolver minhas coisas, resolvo tudo” (Violeta, entrevista, junho de 2018). Assim como Íris, que diz que na instituição “fico na vida de anjo […] com a vida de princesa, vida de rainha.” (Íris, entrevista, junho de 2018).
Rosa, que trabalhou a vida inteira como empregada doméstica, conta que mesmo depois de aposentada ainda tinha que cuidar de tarefas domésticas, o que mudou na ILPI:
“Que é que eu quero mais? Não lavo roupa, não cozinho, não varro casa, não lavo prato, não lavo banheiro, nem varro quintal. Lá eu fazia tudo, agora eu não faço é nada, faço comer e dormir” (Rosa, entrevista, junho de 2018).
As críticas aparecem nos relatos, mas de maneira mais velada. Tulipa, a participante mais antiga da instituição, comenta que quando entrou na ILPI, 15 anos atrás, era “apaixonada” pelo lugar, que contava com uma pequena praça arborizada na entrada, mas naquele momento era um chão de terra que servia de estacionamento.
Apesar de os aspectos da institucionalização estarem sinalizados em todos os relatos, Rosa é a única que se detém nos detalhes de sua transição da casa para a ILPI, não porque necessariamente tenha sido experienciada como ruptura, mas provavelmente porque estava na ILPI há apenas 2 meses, passando ainda por processos de adaptação. Para Tania Zittoun (2009), a ruptura deve ser percebida como tal pela pessoa; além disso, a transição deve englobar aspectos identitários, de aprendizagem e de significação. Assim, dificilmente se poderia dizer que a institucionalização em si tenha sido uma ruptura para as entrevistadas.
Para além dos marcadores mais normativos de curso de vida, como casamento, trabalho, filhos e viuvez, as participantes sinalizam outros marcos importantes em suas trajetórias. Os relatos de Margarida, Petúnia e Violeta destacam marcadores desencadeados por acontecimentos que culminaram com suas institucionalizações: o conflito com o filho devido à casa, no caso de Petúnia; o transtorno com a drogadição da filha, no caso de Violeta — situações descritas na literatura (Teixeira e Cavalcante, 2024); e o grave problema oftalmológico, no caso de Margarida.
Quando se fala em curso de vida, pode-se subentender que há linearidade, continuidade, mas as interrupções, as rupturas, as quebras do caminho exigem uma reorientação, põem-se um desafio ao desenvolvimento (Zittoun, 2009). Petúnia, avaliando o que lhe aconteceu a partir da sua perspectiva atual, consegue indicar fatores que apontavam para a ruptura, como o fato de ter deixado todo o dinheiro do empréstimo sob a administração do filho. No entanto, o momento decisivo é quando mãe e filho discutem e Petúnia decide, mesmo com conflitos internos, ir à delegacia especializada denunciar o filho. A partir daí, passa por uma série de mudanças que caracterizam a transição: rompe relações com ele e consequentemente com os netos, passa a se ver como “só”, desamparada, o que significa que sua permanência, em sua própria casa, não é mais viável. A ILPI aparece como uma solução e sua mudança significa o “encerramento” da crise. Violeta não dá tantos detalhes sobre os problemas com a filha, mas o modo como são relatados estes eventos devem ser vistos com atenção. O esposo não queria criar “filho dos outros”, de modo que a adoção da filha aconteceu após a morte dele. Os problemas se iniciaram ainda quando a filha era menor de idade e exigiu de Violeta cuidados que não resultaram em melhora, de modo que, com a maioridade da filha, ela se viu sem controle da situação e exposta a riscos.
Margarida, depois de narrar os eventos em torno da perda da visão de um olho, as mudanças que o tratamento exigiu em sua vida, desde a venda de seu apartamento para arcar com os custos da cirurgia até o fato de não poder mais ler tanto quanto gostaria, considera a influência decisiva da irmã e a mudança extrema que representa morar em um espaço coletivo depois de 36 anos vivendo sozinha; é possível que a institucionalização seja percebida também como uma ruptura para ela. Margarida demarca, com essa ambivalência de significados, que esse processo de adaptação em curso exigia-lhe um reposicionamento, uma reorientação.
Em todo caso, os relatos apontam para a multifatoriedade envolvida nos processos de institucionalização e suas significações, intimamente relacionados com a história de vida de cada uma das participantes. Também podemos dizer que há uma congruência entre os achados desta pesquisa e o que encontramos na literatura como perfil de pessoas idosas institucionalizadas: viverem sós, sem companheiros, filhos ou cuidadores que possibilitem a permanência no lar (Araújo et. al, 2016; Lini et al., 2016), motivos que inclusive estão mais associados a ILPIs filantrópicas e públicas (Camarano e Mello, 2010; Pinheiro et al., 2016).
Se, por um lado, Rosa relata não ter amigos ou familiares, por outro lado, Íris relata apoio da igreja, da comunidade e principalmente do filho e da nora, podendo ir para casa sempre que precisar. No entanto, há uma diferença importante nos significados em torno da institucionalização: enquanto Íris insiste que foi para a ILPI por opção pessoal, já que poderia morar com o filho, Rosa conta que, se tivesse família, estaria com ela.
O relato de Jacinto é o mais emblemático nesse sentido. Toda sua narrativa e todos os significados que vai construindo sobre sua história de vida giram em torno de sua percepção de estar sozinho, de nunca ter casado e de não ter familiares que se importem com ele. Apesar de seu relato poder ser contestado a partir do que ele mesmo conta, é assim que Jacinto significa sua experiência, é assim que ele a vive subjetivamente e é isso que se deve considerar, em cada uma das entrevistas. Para Bruner (1990/1997), a narrativa se constitui não na realidade dos fatos narrados, mas na estrutura e sequência de suas sentenças. O lugar que “personagens”, eventos e estados mentais ocupam no roteiro é o significado narrativo.
As histórias contadas informam fragmentos de significados para a institucionalização. Apesar de as características serem bastante particulares nas trajetórias de cada uma delas, é possível encontrar pistas do que é a institucionalização de pessoas idosas independentes, de baixa renda, em ILPIs filantrópicas. É possível também projetar o que poderia ser feito para otimizar essas experiências e fornecer opções de velhice para aquelas que não têm família, procuram abrigo, companhia, cuidados ou até mesmo descanso.
As significações sobre institucionalização das pessoas idosas que moram em uma ILPI e os ajustes realizados por elas na transição do lar para a instituição, explicitados em suas narrativas autobiográficas, foram agrupadas em duas unidades de análise. Na primeira, com base nos caminhos traçados até a ILPI, a instituição é procurada para fins de uma moradia compartilhada, ou ainda “assistida”, já que os motivos relacionados à institucionalização estão ligados, de uma maneira ou de outra, à necessidade de se manterem acompanhadas. Com exceção de Delfino, que precisa de algum nível de assistência, nenhuma das outras participantes necessita cuidados formais. Já a segunda unidade — significações da institucionalização — revela um processo de mudança na percepção das instituições asilares: indicam ser a instituição um local seguro e protegido para moradia de pessoas que vivem sozinhas, com serviço de limpeza e cozinha, livrando-as de afazeres domésticos, e possuindo regras necessárias a um convívio coletivo, mesmo que, por vezes, haja inconveniências. As participantes temem chegar a um estágio de dependência de outros e serem vulneráveis a situações de violência.
Os processos de ajustamento pessoal tendem a ser diferentes, a partir dos contextos ambientais. Mas estes processos são descritos de modo similar pelas participantes, a nível operacional, o que revela ainda mais o papel da própria instituição na mudança. Nesse sentido, estudos com ILPIs públicas ou com fins lucrativos também devem complementar esse panorama, compreendendo que não só o contexto ambiental é diferente como também o próprio público que elas atendem.
Assim, perguntamo-nos se a ILPI representa uma necessidade para essas pessoas ou mesmo se a instituição se configura como única opção. A oferta de programas de moradia compartilhada ou de serviços mais sistemáticos de atenção domiciliar, para aqueles que possuem imóvel próprio, por exemplo, seriam opções de serviços que supririam a necessidade de todos os dez participantes. Com isso, não queremos desqualificar essa modalidade de instituição, mas reiterar a discussão sobre a não efetividade da política pública brasileira que estruture os cuidados de longa duração para pessoas idosas. Consideramos importante ampliar os estudos com instituições privadas sem fins lucrativos que possam ou não corroborar as conclusões deste estudo.
O procedimento metodológico utilizado para a coleta de dados merece destaque na presente investigação: a instrução dada aos participantes foi para que contassem suas histórias de vida, destacando os aspectos que julgassem importantes. O objetivo era capturar eventos que marcassem a história de vida dessas pessoas, sem que fosse necessária uma pergunta direta. A menção espontânea sobre o processo de institucionalização seria um fato significativo em si. Entretanto, se por um lado, esse processo foi trazido à cena e discutido em nuances e significações diversas, por outro lado, nem sempre foi fácil conduzir o encontro: o roteiro aberto, sem questões que pudessem estruturar o relato, deu margem a formas e conteúdos bem diversos, com detalhes ou simplificações em demasia. Exigiu da pesquisadora que conduziu a coleta muita habilidade para manejar os encontros, de modo a conseguir os relatos, mesmo quando as entrevistadas encontravam dificuldades em relatar.
O campo de investigação sobre envelhecimento é diverso e bastante delicado, uma vez que se lida com interesses conflitantes, seja das direções das instituições, de familiares, procuradores e curadores, no caso de pessoas idosas sem condições de administrar a própria vida. É necessário ter sensibilidade para manter o foco no que deve ser o principal interesse dos estudos: a pessoa idosa, protagonista de sua própria história.
Anvisa. (2021). Resolução RDC no 502, 101 Diário Oficial da União 110. https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=31/05/2021&jornal=515&pagina=110&totalArquivos=259
Araújo, Andréa M.; Sousa Neto, Temístocles B., & Bós, Ângelo J. G. (2016). Diferenças no perfil de pessoas idosas institucionalizadas, em lista de espera e que não desejam institucionalização. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, 19(1), 105–118. https://doi.org/10.1590/1809-9823.2016.14175
Berzins, Maria A. V. da S.; Giacomin, Karla C., & Camarano, Ana A. (2016). A assistência social na política nacional do idoso. In Alexandre O. Alcântara, Ana A. Camarano & Karla C. Giacomin (Orgs.), Política Nacional do Idoso: Velhas e novas questões (pp. 107–133). IPEA.
Brito, Samara S., & Moreira, Patrícia C. (2018). Revisão integrativa sobre o envelhecimento em Instituições de Longa Permanência: Reflexões fenomenológico-existenciais. IGT na Rede, 15(28), 50–75.
Bruner, Jerome. (1990/1997). Atos de significação. Artes Médicas.
Bullington, Jennifer, & Karlsson, Gunnar. (1984). Introduction to phenomenological psychological research. Scandinavian Journal of Psychology, 25(1), 51–63. https://doi.org/10.1111/j.1467-9450.1984.tb01000.x
Camarano, Ana A., & Barbosa, Pamela. (2016). Instituições de longa permanência para idosos no Brasil: Do que se está falando. In Alexandre O. Alcântara, Ana A. Camarano, & Karla C. Giacomin (Orgs.), Política Nacional do Idoso: Velhas e novas questões (pp. 479–514). IPEA.
Camarano, Ana A., & Mello, Juliana L. (2010). Cuidados de longa duração no Brasil: O arcabouço legal e as ações governamentais. In Ana A. Camarano (Org.), Cuidados de Longa Duração para a População Idosa: Um Novo Risco Social a Ser Assumido? (pp. 67–91). IPEA.
Christophe, Micheline, & Camarano, Ana A. (2010). Dos asilos às instituições de longa permanência: Uma história de mitos e preconceitos. In Ana A. Camarano (Org.), Cuidados de Longa Duração para a População Idosa: Um Novo Risco Social a Ser Assumido? (pp. 145–162). IPEA.
De Castro, Thiago G., & Gomes, William B. (2011). Aplicações do método fenomenológico à pesquisa em psicologia: Tradições e tendências. Estudos de Psicologia (Campinas), 28, 153–161. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2011000200003
Dutra, Nathália S., & Rodrigues, Adriana G. (2021). Levantamento dos principais motivos para a institucionalização de idosos. BIUS -Boletim Informativo Unimotrisaúde em Sociogerontologia, 28(22), 1-17. https://periodicos.ufam.edu.br/index.php/BIUS/article/view/9925
Faria, Carla G., & Carmo, Macedo P. (2015). Transição e (in)adaptação ao lar de idosos: Um estudo qualitativo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 31(4), 435–442. https://doi.org/10.1590/0102-37722015042472435442
Furlan, Reinaldo. (2004). Parte B – Corpo, sentido e significação. In Maria C. Rossetti-Ferreira, Kátia S. Amorim, Ana P. S. da Silva & Ana M. A. Carvalho, (Orgs.), Rede de Significações e o Estudo do Desenvolvimento Humano (pp. 51-56). Artmed.
Guimarães, Mirna Rodrigues C.; Giacomin, Karla Cristina; Ferreira, Raquel Conceição, & Vargas, Andrea Maria D. (2023). Avaliação das instituições de longa permanência para idosos no Brasil: um panorama das desigualdades regionais. Ciência & Saúde Coletiva, 28, 2035–2050. https://doi.org/10.1590/1413-81232023287.15792022
Lini, Ezequiel V.; Portella, Marilene R., & Doring, Marlene. (2016). Fatores associados à institucionalização de idosos: Estudo caso-controle. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, 19, 1004–1014. https://doi.org/10.1590/1981-22562016019.160043
Minayo, Maria Cecília de S. (2012). Análise qualitativa: Teoria, passos e fidedignidade. Ciência & Saúde Coletiva, 17(3), 621–626. https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000300007
Minayo, Maria Cecília de S. (2017). Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: Consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Qualitativa, 5(7), 01–12.
Oliveira, Marta K., & Rego, Teresa C. (2006). Desenvolvimento psicológico e constituição de subjetividades: Ciclos de vida, narrativas autobiográficas e tensões da contemporaneidade. Pro-posições, 17(2), 119–138.
Pinheiro, Natalia C. G.; Holanda, Vinícius C. D.; Melo, Laércio A.; Medeiros, Annie K. B., & Lima, Kenio C. de. (2016). Desigualdade no perfil dos idosos institucionalizados na cidade de Natal, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 21, 3399–3405. https://doi.org/10.1590/1413-812320152111.19472015
Rossetti-Ferreira, Maria Clotilde; Amorim, Kátia de S., & Silva, Ana Paula S. (2004). Rede de significações: Alguns conceitos básicos. In Maria C. Rossetti-Ferreira, Kátia S. Amorim, Ana P. S. da Silva & Ana M. A. Carvalho, (Orgs.), Rede de significações e o estudo do desenvolvimento humano (pp. 23–33). Artmed.
Santos, Maria Angélica A. B.; Moreira, Rafael S.; Faccio, Patrícia F.; Gomes, Gabriela C., & Silva, Vanessa de L. (2020). Fatores associados à violência contra o idoso: Uma revisão sistemática da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, 25(6), 2153–2175. https://doi.org/10.1590/1413-81232020256.25112018
Teixeira, Leila Daniela Sousa Ferreira, & Cavalcante, Francisca Verônica. (2024). Causas da institucionalização de idosos/as em ILPI no Estado do Maranhão. Revista Foco, 17(8), e5719–e5719. https://doi.org/10.54751/revistafoco.v17n8-066
Trindade, Zeidi A.; Menandro, Maria Cristina S., & Gianórdoli-Nascimento, Ingrid F. (2007). Organização e interpretação de entrevistas: Uma proposta de procedimento a partir da perspectiva fenomenológica. In Maria M. P. Rodrigues & Paulo R. M. Menandro (Orgs.), Lógicas Metodológicas: Trajetos de pesquisa em psicologia (pp. 71–92). GM Editora.
Zittoun, Tania. (2009). Dynamics of life-course transitions: A methodological reflection. In Jaan Valsiner, Peter Molenaar, Maria C. D. P. Lyra & Nandita Chaudhary, (Orgs.), Dynamic Process Methodology in the Social and Developmental Sciences (pp. 405–430). Springer.
Zittoun, Tania. (2016). Living creatively, in and through institutions. Europe’s Journal of Psychology, 12(1), 1–11. https://doi.org/10.5964/ejop.v12i1.1133
Maria Eduarda Araújo Gonçalves
Psicóloga clínica e docente de psicologia na Universitat Digital Europea em Andorra. Mestre em psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
mariaeduarda.araujo@universitatunipro.com
https://orcid.org/0000-0002-1682-3170
Maria Isabel Pedrosa
Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco. É coordenadora do Laboratório de Interação Social Humana (LabInt). Suas pesquisas estão voltadas para a ontogênese humana, com foco na compreensão social de crianças quando em convívio com pares de idade.
maria.cpedrosa@ufpe.br
https://orcid.org/0000-0002-7273-8157
Renata Lira dos Santos Aléssio
Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco. Integrante do LabInt, pesquisa temas ligados à bioética e ao desenvolvimento humano em uma perspectiva sociointeracionista.
renata.lsantos@ufpe.br
https://orcid.org/0000-0001-8548-2771
Formato de citación
Gonçalves, Maria Eduarda Araújo; Pedrosa, Maria Isabel, & Aléssio, Renata Lira dos Santos. (2025). Pessoas idosas institucionalizadas e processos de significação sobre institucionalização. Quaderns de Psicologia, 27(2), e2165. https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.2165
Historia editorial
Recibido: 16-05-2024
1ª revisión: 21-11-2024
Aceptado: 26-12-2024
Publicado: 29-08-2025