Quaderns de Psicologia | 2024, Vol. 26, Nro. 3, e2036 | ISSN: 0211-3481 |

https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.2036

Racionalidade neoliberal e “pathos” da melancolização: uma sinfonia melancólica do empreendedor de si

Neoliberal Rationality and the “Pathos” of Melancholy: a Melancholic Symphony of the Self-entrepreneur

La racionalidad neoliberal y el “pathos” de la melancolía: una sinfonía melancólica del autoempresario

Flavia Laís Machado Moura

Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGP/UFRJ)

Claudia Henschel de Lima

Universidade Federal Fluminense Campus de Volta Redonda

RESUMO

O artigo resulta da pesquisa O neoliberalismo e o sujeito de si mesmo: Um estudo sobre a racionalidade neoliberal e o pathos da melancolização, conduzida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A partir da conexão entre a perspectiva da filosofia política e da psicanálise, investigamos a constituição do sujeito neoliberal e a especificidade de seu pathos. Os acontecimentos políticos que atravessaram o cenário político e psicossocial brasileiro são nosso ponto de partida para interrogar sobre os processos psíquicos que estão na base da constituição da racionalidade neoliberal. Defendemos a hipótese de que a formação da racionalidade neoliberal se nutre da mobilização de um sentimento muito preciso — por nós denominados de melancolização. E é uma parte do desenvolvimento da hipótese, que objetivamos apresentar ao longo deste artigo.

Palavras-chave: Capitalismo; Racionalidade; Melancolização; Empreendedorismo

ABSTRACT

The article presents the conclusive findings of the research titled Neoliberalism and the Self-Governing Subject: A Study on Neoliberal Rationality and the Pathos of Melancholization, which was conducted as part of the Graduate Program in Psychology at the Federal University of Rio de Janeiro. By integrating perspectives from political philosophy and psychoanalysis, we rigorously explore the formation of the neoliberal subject and the unique nature of its emotional experiences. We use recent political events in Brazil as a starting point to thoroughly examine the psychological processes that contribute to the development of neoliberal rationality. Our robust hypothesis strongly suggests that the establishment of neoliberal rationality is unequivocally driven by the activation of a specific emotion, which we refer to as melancholization”. This article convincingly presents the development of this hypothesis in detail.

Keywords: Capitalism; Neoliberal rationality; Melancholization; Entrepreneurship

INTRODUÇÃO

O artigo resulta da pesquisa O neoliberalismo e o sujeito de si mesmo: Um estudo sobre a racionalidade neoliberal e o pathos da melancolização, conduzida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A partir da conexão entre a perspectiva da filosofia política e da psicanálise, investigamos a constituição do sujeito neoliberal e a especificidade de seu pathos.

Desde o ano de 2015, o Brasil enfrenta a demonização do Estado de bem-estar social e da política, como corruptores e excessivamente interventores sobre a liberdade individual — além da ascensão da bandeira da realização de reformas estruturais no âmbito econômico e político para redução do papel do Estado e amplificação do funcionamento do mercado. Junto a isso, observamos, também, uma tendência antidemocrática, cujo traço é a valorização da moralidade mais tradicional no lugar da política. O governo Bolsonaro foi o testemunho dessa junção do livre mercado com a moralidade da família e da religião.

Esse ataque ao Estado de bem-estar social e à política está na base do que Pierre Dardot e Christian Laval, em A Nova Razão do Mundo. Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal (2016), apontaram como a conformação de uma racionalidade, uma nova subjetividade pelo neoliberalismo: o empreendedor de si. De fato,

A gestão neoliberal de si mesmo consiste em fabricar para si mesmo um eu produtivo, que exige sempre mais de si mesmo e cuja autoestima cresce, paradoxalmente, com a insatisfação que se sente por desempenhos passados. Os problemas econômicos são vistos como problemas psíquicos relacionados a um domínio insuficiente de si e da relação com os outros. A fonte da eficácia está no indivíduo: ela não pode mais vir de uma autoridade externa. É necessário fazer um trabalho intrapsíquico para procurar a motivação profunda. O chefe não pode mais impor: ele deve vigiar, fortalecer, apoiar a motivação. Dessa forma, a coerção econômica e financeira transforma-se em autocoerção e autoculpabilização, já que somos os únicos responsáveis por aquilo que nos acontece. (Dardot e Laval, 2016, p. 345)

A avaliação dos autores é precisa: a conformação da racionalidade neoliberal depende da diminuição da intervenção do Estado de bem-estar social em nome da ascensão da lógica concorrencial, da individualização de responsabilidades e da flexibilidade exigida pela forma empresarial de existência.

No que tange essa flexibilidade, tem-se, na verdade, a relativização do salário fixo e da importância da filiação a sindicatos: o empresário de si é “seu próprio patrão”, sendo responsável por negociar suas habilidades como uma empresa. A nova razão do mundo é cercada pela aura da autorreferência. A citação acima ainda destaca dois traços importantes da racionalidade neoliberal: a autocoerção e a autoculpabilização. Assim, as relações sociais no neoliberalismo não passam pela coerção externa, mas por uma espécie de coerção interna na qual cabe, à própria subjetividade, vigiar e regular a si mesma.

Na linha dessa investigação sobre a genealogia do neoliberalismo, Wendy Brown em Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente (2019), trabalha com a hipótese de que o neoliberalismo produz o desmantelamento do laço social e a aparição da categoria de capital humano e das unidades familiares econômico-morais. Segundo a autora, a defesa da família tradicional é central na defesa do mercado, precisamente porque é sobre ela que recairá a responsabilização dos diversos setores do Estado que sofrem reformas estruturais — como a saúde, a educação e a seguridade social.

Essas reformas, que reduzem o papel do Estado, responsabilizam principalmente os indivíduos masculinos — por possuir como modelo a família patriarcal na provisão dos cuidados aos dependentes:

Enquanto os investimentos sociais na educação, habitação, saúde, cuidado infantil e seguridade social são reduzidos, delega-se novamente à família a tarefa de prover todos os tipos e dependentes — jovens, velhos, enfermos, desempregados, estudantes endividados ou adultos deprimidos ou viciados. (Brown, 2019, p. 51)

Para a autora, o neoliberalismo se fundamenta, simultaneamente, nas forças de livre-mercado e no apelo à moralidade mais tradicional, caracterizada em termos de defesa da família, patriotismo e religião. Essa articulação entre mercado e moral tradicional é inseparável dos traços de autocoerção e a autoculpabilização identificados por Dardot e Laval (2016), e típicos da racionalidade neoliberal. Assim, o neoliberalismo é uma reação às políticas de bem-estar social garantidas pelo Estado, pela defesa da hegemonia da lógica de mercado — tanto para o campo social como para a conformação ética do empreendedor de si — e seu enraizamento na moralidade tradicional à qual o empreendedor de si se apega.

Foi exatamente a implementação deste quadro, que testemunhamos no Brasil desde o processo do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, entre os anos de 2015-2016, da implementação do Plano de Governo Ponte para o Futuro e do pacote de reformas estruturais do Estado brasileiro com Michel Temer (vice-presidente empossado após o impeachment) até a eleição de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil para o período de 2019 a 2022. De fato, a instabilidade institucional tem seu marco na Operação Lava-jato, que teve início em 17 de março de 2014, pela Polícia Federal, e investigou supostos crimes (lavagem de dinheiro de pessoas físicas e jurídicas, caixa 2 para financiar partidos políticos, sonegação fiscal, evasão de dívidas, pagamento de propina a políticos, corrupção de agentes públicos (funcionários públicos e agentes políticos) e desvio de recursos públicos da Petrobrás.

Tal operação fora comandada por Sergio Moro e contribuiu diretamente para a demonização do Estado brasileiro como perdulário e corrupto e desencadeamento do processo impeachment até a ascensão de um governo de extrema-direita em 2019. Esse governo, defendeu simultaneamente o livre-mercado por meio da continuidade da política agressiva de reforma trabalhista, desregulamentando grande parte da atividade trabalhista e inflacionando a responsabilidade individual. E para o retorno à moralidade tradicional marcada pela religião e pelos valores familiaristas — verificando o que caracterizamos como a tríade neoliberal: livre-mercado/empreendedorismo de si/moralidade tradicional.

Um ponto que ressaltamos aqui se refere aos impactos subjetivos experienciados pela população brasileira por ocasião do impeachment. A matéria Brasileiros à beira de um ataque de nervos, publicada no jornal El País (Novaes, 2016), em 16 de abril de 2016, mostrou como a tensão política que culminou no impeachment desencadeara, na população brasileira, o aumento e agravamento de sintomas subjetivos. Dentre esses sintomas, foram elencados: ansiedade, angústia, modificações de humor e alterações do sono.

Os acontecimentos políticos que atravessaram o cenário político e psicossocial brasileiro são nosso ponto de partida para interrogar, a partir das referências de Dardot e Laval (2016) e Brown (2019), os processos psíquicos que estão na base da constituição da racionalidade neoliberal. Defendemos a hipótese de que a formação da racionalidade neoliberal se nutre da mobilização de um sentimento muito preciso — por nós denominados de melancolização. E é uma parte do desenvolvimento da hipótese, que objetivamos apresentar ao longo deste artigo.

A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NEOLIBERAL

Dardot e Laval (2016) destacam que o neoliberalismo tem, como inovação, vincular a forma como seres humanos são governados à própria forma como o ser humano se “autogoverna”. A hipótese dos autores é que a consolidação do neoliberalismo se dá pela constituição de uma racionalidade, de uma subjetividade, produto da internalização da lógica de mercado, com duas características centrais:

1.Generalização da concorrência como norma de conduta.

2.Empresa como modelo de subjetivação.

Essa hipótese encontra consistência teórica em dois autores clássicos do neoliberalismo: Friedrich August Von Hayek e Ludwig Von Misses.

No que se refere à generalização da concorrência como norma de conduta, um trecho do livro de Hayek (2010), define a internalização da concorrência e sua conversão em traço subjetivo.

A doutrina liberal é a favor do emprego mais efetivo das forças da concorrência como um meio de coordenar os esforços humanos, e não de deixar as coisas como estão. Baseia-se na convicção de que, onde exista a concorrência efetiva, ela sempre se revelará a melhor maneira de orientar os esforços individuais. (Hayek, 2010, p. 58)

Algo similar se verifica no livro de Von Misses, Ação Humana. Um Tratado de Economia (2015), no que se refere à transformação da empresa como modelo de subjetividade. No capítulo XV, O Mercado, Von Misses aprofunda essa questão com a definição de empresário.

Para ser bem-sucedido nos negócios, um homem não precisa ter um diploma de administração de empresas. Essas escolas treinam os subalternos para trabalhos rotineiros. Certamente, não formam empresários. Não é possível ensinar uma pessoa a ser empresária. Um homem se torna empresário ao perceber oportunidades e preencher vazios. (…) Os homens de negócio mais bem-sucedidos foram frequentemente ignorantes, se considerarmos os critérios escolásticos do corpo docente. Mas estavam à altura de sua função social de ajustar a produção à demanda mais urgente. Em razão desse mérito, são escolhidos para liderar a atividade econômica. (Von Misses, 2015, p. 315-316)

A ascensão do modelo neoliberal promoverá a homogeneização do discurso do homem em torno da figura da empresa, que está na base do “empreendedor de si”, “sujeito empresarial” ou “sujeito neoliberal”. Essa é a nova razão do mundo, que dá título ao livro de Dardot e Laval (2016). Estabelecendo uma correspondência íntima entre o governo de si e o governo das sociedades, o modelo da empresa define, então, uma nova ética, isto é, certa disposição interior, certo ethos que deve ser encarnado com um trabalho de vigilância sobre si mesmo, reforçados e verificados pelos procedimentos de avaliação. Nessas condições, pode-se dizer que o primeiro mandamento da ética do empreendedor de si é “ajuda-te a ti mesmo” e que, nesse sentido, ela é a ética da autoajuda (Dardot e Laval, 2016).

Nesta nova razão do mundo, a ação humana passa a ser caracterizada como se fosse determinada por uma ordem imperiosa, uma espécie de voz baixa que fala em cada ser humano. Neste sentido, é fundamental ter a exata noção da modificação no neoliberalismo: “Nós não saímos da jaula de aço da economia capitalista a que se referia Weber. Em certos aspectos, seria melhor dizer que cada indivíduo é obrigado a construir, por conta própria, sua jaula de aço individual” (Dardot e Laval, 2016, p. 330).

A ética neoliberal não é a ética protestante do capitalismo weberiano. No neoliberalismo, a subjetividade é conformada pela lógica do mercado, convertendo-se em motivação individual que permite ao eu participar inteiramente, engajar-se plenamente e entregar-se completamente à sua atividade empresarial. Segundo os autores, a internalização da concorrência e das características de funcionamento da empresa forma a racionalidade neoliberal. Essa nova razão do mundo possui dois princípios éticos:

1.Empresa de si mesmo: O sujeito neoliberal encarna as características de uma empresa, com capacidade de conduzir, gerir e controlar sua própria vida. Esse controle se dá por meio dos princípios: energia, iniciativa, ambição, cálculo. Tal ethos da empresa de si mesmo, que está presente em todas as relações, é uma resposta à nova regra do jogo que muda completamente o contrato de trabalho, a ponto de aboli-lo como relação salarial e representatividade sindical. Na empresa de si mesmo, o eu se converte em empresa que negocia com outras empresas.

2.Accountability: é a responsabilidade por si mesmo, o fato de responder por seus atos diante dos outros.

Dardot e Laval (2016) identificam uma série de técnicas contemporâneas para a constituição do desempenho do empreendedor de si e que se valem dos sentimentos movidos pela concorrência e competição no próprio sujeito. São elas: coaching; programação neurolinguística (PNL); análise transacional e gurus de coach. Tais técnicas têm sua razão de ser na seara de incertezas que cercam o sujeito neoliberal. A carga de viver à sombra da possibilidade de fracasso em seus investimentos assemelha-se à ameaça de declarar falência no mundo empresarial quando a aplicação dos recursos não alcança os resultados esperados.

As escolhas de investimento são de responsabilidade individual, a consequência do fracasso ou sucesso é fruto dos recursos econômicos — seja capital monetário ou capital humano — que o empreendedor de si detém e empenha. Dessa forma, a precarização da seguridade dos direitos, a fluidez das relações que se firmam como contratos e a responsabilização total por seu destino incidem sobre o sujeito. Mas tudo se passa como se essa responsabilização fosse a autovalorização do desejo e da liberdade: “o uso da palavra ‘empresa’ não é uma simples metáfora, porque toda a atividade do indivíduo é concebida como um processo de valorização do eu” (Dardot e Laval, 2016, p. 335).

Essa capacidade de modificação, da responsabilidade para a autovalorização do desejo, indica como a construção desta racionalidade neoliberal dissimula a dimensão de conflito na formação elementar do “eu” em nome da performance individual. Não por acaso, os manuais de autoajuda se apresentam como o guia moral do sujeito empresarial. A gestão da carreira e da subjetividade passam a ter estratégias de desenvolvimento e otimização como se um fosse complementar ao outro, e ambos resultassem em autorrealização. O gerenciamento estratégico do sujeito passa não só a ter a linguagem empresarial, como ganha um agente desenvolvedor: os gurus de coaching. Nesta nova razão neoliberal, o campo de atividades do sujeito neoliberal: 1. É regulado por um cálculo de custo; 2. Esse cálculo de custo é inseparável de um imperativo de performance de ir sempre mais além com o objetivo de maximizar a eficácia de cada ser humano no campo social; 3. São convertidos em investimento constante para a valorização do eu; 4. Estão sob a responsabilidade do eu.

AUTOVALORIZAÇÃO COMO ETHOS EMPRESARIAL E CORROSÃO DO LAÇO SOCIAL

Conforme apresentamos, a generalização da concorrência como norma de conduta e a empresa como modelo de subjetivação são os dois traços que estão presentes no processo de conformação da racionalidade neoliberal. Incluímos uma variável que é fundamental para que entendamos como a lógica de funcionamento da economia se converte em lógica de funcionamento subjetivo.

Dardot e Laval (2016) definem essa variável por meio do termo vontade — expressa em termos de vontade de realização pessoal, o projeto que se quer levar a cabo, a motivação que anima o colaborador da empresa, ou o que nós situamos de forma mais rigorosa epistemologicamente, como sendo o investimento afetivo, pulsional. É sobre esse investimento afetivo que repousam as técnicas contemporâneas de fabricação e gestão da racionalidade neoliberal, elencadas mais acima, e que levam o sujeito a realizar uma tarefa para uma empresa como se trabalhasse para si mesmo, a sentir-se responsável pelo sucesso ou fracasso desta tarefa, já que sua realização é convertida em realização para si mesmo. De fato, as tais técnicas confluem para uma mesma finalidade: conformar o sujeito a potencializar suas habilidades, sempre em busca da melhor versão de si, a fim de trabalhar para a sua própria eficácia, para a intensificação de seu esforço, como se essa conduta viesse dele próprio, como se esta lhe fosse comandada de dentro por uma ordem imperiosa de seu próprio afeto, de suas pulsões, e em relação às quais não pode resistir.

O sujeito neoliberal é, então, aquele que introjetou a lógica do mercado para suas relações, que as regula por meio de dispositivos de desempenho e gozo e que apresenta suas relações interpessoais obedecendo ao princípio da contratualização. Dentro deste princípio de contratualização, os contratos entre empresas e sua extensão até a subjetividade fornecem a nova estrutura simbólica de liberdade individual de escolha e conexão entre os sujeitos-empresa, sem se reportar a categorias de representatividade social, como os sindicatos. Desta forma, segundo a lógica neoliberal, as relações humanas não precisam mais de instituições que assegurem — via filiação — a reciprocidade simbólica. Mas, a lógica autorrealizadora do sujeito neoliberal, que tem por narrativa central a liberdade individual de escolha, produz simultaneamente o efeito colateral da total responsabilidade pelos riscos assumidos em conjunturas de crises econômicas, políticas e sociais. Testemunhamos isso, recentemente, com a emergência humanitária da COVID-19 e com a insistência por parte do governo brasileiro de que caberia a cada indivíduo a responsabilidade pela decisão de prescrever ou fazer o tratamento off-label, e de prescrever ou tomar a vacina contra a COVID-19.

Tal contratualização entre unidades-empresa com seus riscos e efeitos colaterais, nos remete a um aspecto situado na introdução do presente artigo, com base no estudo de Wendy Brown (2019), que destaca que o avanço da gestão neoliberal é inseparável da adoção da moralidade tradicional — em uma espécie de mistura de patriotismo, nativismo e cristandade — desmantelando dois importantes fundamentos da sociedade: a democracia e a igualdade de direitos. Segundo Brown (2019), quando permitimos o desmantelamento das noções de democracia e sociedade, há a quebra da igualdade política, o demos (povo) para de exercer seu governo e dá lugar a uma forma de gestão que privilegia apenas parte da população, que deixa de ser feita por e para todos e passa a operar em uma lógica de por e para alguns aprofundando a desigualdade e, paradoxalmente, a ascensão do sentimento de hiper-responsabilização e autoculpabilização. Para a autora, a população não contemplada é, cada vez mais, responsável por si, e engaja-se em manter e defender seus modos de vida — quase no registro da sobrevivência — e separada da noção de sociedade como um todo, segundo um movimento de depreciação neoliberal do lugar social.

Essa depreciação possibilita, então, o que Brown (2019) denomina de cultura antidemocrática desde baixo, em que formas autoritárias de gestão do poder estatal são defendidas pelos próprios membros da sociedade. Na perda da percepção de si como parte de algo que está além do próprio sujeito, ou na estreita percepção de que, no máximo, pertence a um grupo familiar, a noção de cidadania também se esvai e a legitimação de um governo autoritário e antidemocrático, não parece algo a ser combatido, mas parte ativa da forma de gestão neoliberal, conforme já avaliara Dardot e Laval (2016).

A HIPÓTESE DA MELANCOLIZAÇÃO COMO PATHOS NEOLIBERAL: UMA PERSPECTIVA A PARTIR DA FORMULAÇÃO FREUDIANA DA MELANCOLIA

A racionalidade neoliberal impõe o desafio de situar a atualidade de sua concepção sobre o sujeito, de sua concepção sobre a humanidade do homem contemporâneo, como um dos eixos de reflexão. A ascensão do empreendedor de si é a negação dos traços centrais da racionalidade formulada por Freud, na passagem do século XIX para o século XX, a partir da clínica da histeria: o conflito, a divisão psíquica, a alienação que lhe é fundante (Freud, 1940[1938]/2018). De fato, o empreendedor de si está divorciado de sua determinação inconsciente, negando a divisão psíquica e a alienação que lhe é fundante, em nome da noção de eu autônomo, com seus traços característicos de autorreferência, autogestão ou autodeterminação, autenticidade, individualidade, unidade e consciência de si (Safatle, 2012).

Essa percepção específica do eu não se dissocia da hiper responsabilização que advém com o desmantelamento do Estado de bem-estar social. Dessa forma, uma maior compreensão sobre a racionalidade neoliberal, em seus mecanismos de sustento e seus principais efeitos, são centrais na direção assumida pela presente pesquisa, posicionando:

1.O neoliberalismo como modelo de administração econômica que não se restringe ao mercado, mas que exige uma racionalidade específica a partir da gestão dos afetos: o empreendedor de si — sendo o emprego do si no sentido de reforçar o fato de que, na lógica do empreendedorismo, o sujeito está separado do sistema político de direitos de cidadania, sendo responsável por si mesmo.

2.O impacto corrosivo no laço social.

3.A melancolização como sentimento central (pathos) do empreendedor de si.

No que se refere à melancolização, ela nos aponta para outro campo de investigação, articulado ao campo da filosofia política: a compreensão dos processos psíquicos mobilizados na constituição da racionalidade neoliberal. Essa articulação fora, de algum modo, antecipada por Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921/2020), em que sustenta a impossibilidade de se separar psicologia individual e psicologia social; ou seja, de se distinguir entre uma psicologia que investigaria os processos de constituição do eu e um campo de investigação dedicado a pensar criticamente os meios de sujeição social e produção de racionalidade. Sustentamos que o entendimento dos processos de constituição da racionalidade neoliberal, como empreendedor de si, é inseparável da identificação de um sentimento, um pathos central denominado melancolização.

A racionalidade que mercantiliza a subjetividade, chancela ao eu um estatuto de coisa, a identificação à figura da empresa, opera uma gestão com métricas e manuais de aprimoramentos. A gestão neoliberal, da redução da intervenção do Estado e da promoção da concorrência, resulta em um ensimesmamento sem precedentes. Perceber a si como responsável por seu destino, ter uma escala quantificável de valor para si a partir de seus desempenhos e identificar-se como coisa — empresa de si mesmo —, incute aos sujeitos dentro do neoliberalismo uma forma específica de produção de sentido a si e ao mundo. A isso chamamos de melancolização, a tonalidade específica que é índice de submissão à racionalidade neoliberal. Por esse motivo, a melancolização está fora das categorias psicopatológicas, pois está na base da produção de sentido de uma vida objetificada e individualiza de tal forma que haverá a possibilidade do retorno pulsional autorrecriminatório sobre o eu, mediante a resposta por seus desempenhos em todas as dimensões de sua existência.

A leitura de si como empreendedor, responsável por si, com uma aura que o dissocia do tecido social a que ele pertence, marca, não só a construção de uma identidade autorreferente que pode se alienar do social, mas um sujeito que alimenta a reserva pulsional de autodestruição não só para si, como aprendemos com Freud em Luto e Melancolia (1917[1915]/2010), mas para tudo o que escapa dessa matriz identificatória, que pode ser entendida como ameaça e, portanto, merece ser exterminada.

É nesse ponto que o sujeito neoliberal se apresenta melancolizado, pois ao construir um eu autorreferente e idêntico, a pulsão de morte, autodestrutiva e agressiva, pode recair sobre ele e sobre o que difere dele, mas que é de sua responsabilidade manter, seja sua preservação — no que concerne ao exterior — seja a autodepreciação — quando sua subjetividade passa a possuir métricas de desempenho. Nesse sentido, a melancolização é pathos, é o afeto constituinte do sujeito neoliberal, o índice de uma objetificação específica que possibilita o eu a perceber a si como o objeto perdido, tornando-se a evidência de uma retração psíquica marcada pela insígnia da insuficiência.

A denominação de melancolização decorre do trabalho de Freud em torno da conceituação das formas de experienciar subjetivamente a perda de um objeto amoroso, elaboradas em Luto e Melancolia (1917[1915]/2010) a partir da descoberta inicial de que a especificidade do processo melancólico está situada na hemorragia afetiva ou no que Freud (1895/1996) denominara de hemorragia pulsional. Nesse texto, escrito no quadro da I Guerra, Freud formulara a hipótese de que há dois modos subjetivos de lidar com a perda do objeto amado: o luto e a melancolia. E a pergunta central, que fazemos ao texto de 1917, se refere à natureza desta perda. No Rascunho G (1895/1996), Freud elaborara a hipótese da hemorragia afetiva na base da melancolia. Em Luto e Melancolia (1917[1915]/2010), o autor avança na direção de articular essa hemorragia à perda do objeto amado, diferenciando-a do luto.

A melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição da autoestima que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição. (…) o luto exibe os mesmos traços, com exceção de um: nele, a autoestima não é afetada. (Freud, 1917[1915]/2010, pp. 172-173)

Nessa citação, Freud isola, com precisão, a perda do objeto e o redobramento afetivo, pulsional, sobre o eu com efeitos de autorrecriminação, insulto dirigido a si mesmo e rebaixamento da autoestima como sendo os traços específicos da melancolia. Conforme veremos, é precisamente na tonalidade própria à melancolia que iremos compor nossos acordes de que a melancolização é o pathos do sujeito neoliberal. A partir da distinção feita por Freud em 1917, temos um esclarecimento de como o ser humano se relaciona afetivamente, pathicamente, com a realidade simbólica por meio da identificação.

Na melancolia, destaca-se um estado de ânimo específico decorrente da retração do investimento da pulsão sobre o eu. O eu se identifica ao objeto perdido, se empobrece e entra em paralisia e inação. O eu padece de um rebaixamento da autoestima, de um grandioso empobrecimento e resignação e da ausência de um julgamento de que uma mudança lhe aconteceu. Ele, então, se autorrecrimina, se autorrepreende como indigno e moralmente desprezível, responsabilizando-se pela perda do objeto, avaliando que suas escolhas foram erradas, que adotou ideologias enganosas. Essa espécie de reversão da pulsão na melancolia revela uma conformação subjetiva de maior radicalidade, evidenciando a sujeição do eu ao objeto.

O melancólico ainda nos apresenta uma coisa que falta no luto: um extraordinário rebaixamento da autoestima, um enorme empobrecimento do eu. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu. (Freud, 1917[1915]/2010, pp.175-176)

Na melancolia, as declarações autorrecriminatórias apontam para uma desilusão a respeito do próprio eu, que empobrecido e digno de pena, volta a si os insultos que outrora puderam ser destinados a um objeto amado — via identificação narcísica. A identificação narcísica com o objeto, a partir de Luto e Melancolia (1917[1915]/2010), detecta na melancolia a substituição do amor objetal pela identificação com o objeto e a autopunição como recurso à renúncia objetal da qual o melancólico não pode evitar — fixando-se a ele como objeto substitutivo. Desta forma, o eu pode tratar a si como objeto, destinando a si toda hostilidade da libido narcísica.

A identificação narcísica que pode objetificar o eu, presente nas considerações freudianas a respeito da melancolia, serve de sustento para as nossas reflexões a respeito de um sujeito que identifica a si como coisa: o sujeito neoliberal. A aura autorreferente que constitui o sujeito neoliberal e a reificação da constituição do eu na figura da empresa, promovem a identificação narcísica elucidada por Freud (1917[1915]/2010) e indicam não só a possibilidade do eu “perder-se em si”, mas o custo psíquico do empobrecimento do eu nessa identificação objetal com satisfações autorrecriminatórias. Ao identificar a si como empresa, via racionalidade neoliberal, o eu é objeto dos investimentos narcísicos de desempenho — instrumentalização subjetiva da racionalidade neoliberal —, onde o eu figura em um ensimesmamento que dirige a si a fantasia narcísica de plena satisfação e o retorno hostil da pulsão sobre ele.

A decisão por deslocarmo-nos do termo melancolia e cunharmos a denominação de melancolização se deve ao fato de que não estamos abordando a constituição do sujeito neoliberal a partir de uma referência psicopatológica, mas a partir de um modo de funcionamento afetivo, pulsional, que se generaliza no campo social. Dessa forma, o retorno afetivo que marca a resposta melancólica à perda do objeto, vai muito além de um sentimento de perda; trata-se da eclosão de um sentimento de mortificação e indignidade bem real. É importante destacarmos esse ponto em vista do fato de que mittel que sustenta a escrita do texto de 1917 é justamente o da I Guerra com sua dimensão terrível de perdas afetivas, políticas, sociais e econômicas, conforme já havia sido indicado em Considerações Contemporâneas sobre a Guerra e a Morte (1915/2020).

Ela sujou a sublime neutralidade de nossa ciência, deixou nua nossa vida pulsional, desacorrentou nossos maus espíritos, que acreditávamos permanentemente domados por décadas de educação por parte de nobres predecessores. Ela tornou nossa pátria novamente pequena e outras terras distantes vastas. Ela roubou muito de nós, o que amávamos, e nos mostrou a caducidade de muitas coisas que acreditávamos estáveis. (Freud, 1915/2020, pp. 223-224)

Com isso, ressaltamos como Freud desloca a investigação psicopatológica para o impacto da I Guerra no funcionamento psíquico, a partir da perda e do desligamento afetivo, pulsional — seja em relação ao objeto amado ou a um ideal como a liberdade ou o próprio país — e de sua reversão ao eu. Esse deslocamento possibilita um entendimento acerca da conformação subjetiva de sujeição a uma situação não mais simbolizável e do pathos que lhe é imanente. Estamos, aqui, nos referindo a um aspecto teórico central do desenvolvimento da hipótese de Freud que aparece com clareza em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921/2020). Ao se dedicar à investigação sobre a lógica da formação do eu a partir do conceito de identificação, Freud (1921/2020) definiu a constituição do eu pela alienação às condições materiais da vida social e por sua íntima articulação à formação de uma figura da autoridade, indicando como o eu não é uma instância de mediação, mas pode se converter na própria reificação da autoridade.

O CONCEITO DE IDENTIFICAÇÃO NA BASE DA FORMAÇÃO DO EU E DA GESTÃO DE SEU PATHOS

O conceito de identificação, em Psicologia das Massas e Análise do Eu (Freud, 1921/2020), condensará a presença da figura de autoridade, o laço afetivo com ela e o processo de alienação. E será com base na fórmula da constituição do eu pela identificação, que inclui o laço afetivo com a autoridade, que Freud corajosamente formulará uma teoria sobre a relação entre alienação e autoridade no campo mais amplo das relações sociais.

Essa teoria define como o processo de identificação mobiliza uma gradação de sentimentos que vai desde o enamoramento (com a idealização da autoridade) até a sujeição à figura hegemônica de autoridade: humilde sujeição, alienação, despersonalização, solapamento da iniciativa própria, docilidade, ausência de crítica, desamparo e agressividade direcionada ao que não se conforma a essa forma de identificação pela sujeição. O estudo recente de Henschel de Lima (2020) vê, na formulação de Freud em (1921/2011) a respeito da sujeição como presença hegemônica da autoridade sobre o eu, o processo de “melancolia” investigado, anteriormente, por Freud (1917[1915]/2010).

O capítulo VII de Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921/2020) será dedicado à lógica do processo de identificação e sua centralidade na formação da massa, tomando como referência central o fato de que a identificação é a expressão primitiva, primária, de uma ligação afetiva com outra pessoa. Conforme fora mencionado anteriormente, posicionando o conceito de identificação no cerne da lógica de formação da massa, Freud explicita o processo que articula a formação do eu à forma como se dá o processo de alienação e sujeição social, topicamente encontrados na massa — desde o enamoramento até o próprio desaparecimento do eu (indicativo do que caracterizamos, na pesquisa, do estado de ânimo melancolizado) — além de reconhecer na posição assumida pelo eu, na massa, a presença de uma marca diferencial (um traço, uma insígnia) ou um objeto distintivo (na forma de um chefe, uma entidade, um totem).

Freud (1921/2020) retoma, então, seus achados conceituais sobre o narcisismo, o estado de ânimo à perda do objeto e o complexo de Édipo para definir o processo de identificação tanto como ambíguo, como limitado a um traço do objeto:

1.Do narcisismo, isolara a tese de que uma unidade comparável ao eu não existe desde o início e que sua constituição depende da ação psíquica da identificação.

2.Do estado afetivo ligado à perda do objeto, Freud ressalta como a figura da autoridade pode ser uma solução para a retração do investimento pulsional ao eu.

3.Do complexo de édipo, destacara a identificação primária ao pai como constitutiva do eu (o ideal do eu é o modelo que o eu gostaria de ser). Esse valor de ideal, paradoxalmente, posiciona o pai de forma ambígua no Édipo: ele é o modelo para a constituição do eu, ao mesmo tempo em que é o obstáculo para a manutenção do vínculo primitivo com a mãe.

A partir dessas referências, o autor distinguirá as quatro formas de identificação:

1.Identificação primária: formação do Ideal do Eu (Ser como a pessoa): É a forma de ligação afetiva originária com uma outra pessoa, que conduz o psiquismo ao posterior investimento em outros objetos de amor (ter).

2.Por regressão do ter ao ser: A forma de ligação afetiva originária toma o lugar do investimento em outros objetos de amor (ter), vigorando a introjeção do objeto no eu de duas formas: o objeto odiado, o objeto amado.

3.Infecção psíquica (identificação entre os eus): A forma de ligação afetiva opera entre pessoas a partir do reconhecimento de um traço comum, sem se orientar pelo Ideal do Eu. A identificação é por imitação e está fundada em um querer colocar-se no lugar do outro.

4.Identificação melancólica: ocorre a retração da pulsão ao eu, com identificação ao objeto perdido (a sombra do objeto recai sobre o eu).

Essas formas de identificação não só esclarecem, na formação do líder, a passagem sutil do enamoramento à sujeição como, mais fundamentalmente, evidenciam o grau de funcionamento pulsional — que vai desde a sua distribuição entre o eu e o objeto e até a desaparição mais radical do eu pela sombra do objeto.

Ele é amado por causa das perfeições que se almeja para o próprio Eu, e as quais agora se gostaria de obter, por esse desvio, para a satisfação de seu narcisismo. (…) o Eu se torna cada vez menos exigente, mais modesto, e o objeto, cada vez mais grandioso, mais valioso; este finalmente alcança a posse de todo o amor próprio do Eu, de modo que o autossacrifício do Eu torna-se a consequência natural. O objeto consumiu o Eu, por assim dizer. Traços de humildade, de restrição do narcisismo, de causação de danos a si mesmo estão presentes em qualquer caso de enamoramento; em casos extremos, eles são simplesmente intensificados, e com o recuo das reivindicações sensuais, eles ficam sozinhos a dominar. (…) Silencia-se a crítica exercida por essa instância; tudo o que o objeto faz e exige é correto e inatacável. A consciência não encontra aplicação para tudo que ocorre em favor do objeto; na cegueira amorosa nos tornamos criminosos sem remorso. A situação inteira se deixa resumir por uma fórmula: “O objeto colocou-se no lugar do ideal do Eu”. (Freud, 1921/2020, pp. 188)

Assim, Freud conduz a distinção fundamental entre identificação e enamoramento/sujeição:

1.Na identificação: o objeto foi perdido ou renunciou-se a ele; então é novamente instaurado no Eu, que se modifica parcialmente conforme o modelo do objeto perdido, enriquecendo-se com suas propriedades.

2.No enamoramento/sujeição: o objeto foi totalmente conservado (equivalendo ao pai da horda primitiva, severo, rígido e autoritário) e, como tal, é sobreinvestido por parte e à custa do Eu.

A lógica do enamoramento/sujeição é, também, caracterizada como hipnose em função da posição assumida pelo eu: humilde sujeição, solapamento da iniciativa própria, docilidade e ausência de crítica ante o mesmerista, exatamente como diante do objeto amado. Ele é o único objeto, nenhum outro recebe atenção além dele. Essa distinção é fundamental para a pesquisa no ponto preciso em que se refere afeto específico à essa forma de identificação: a melancolização.

A figura 1 foi desenhada por Freud (1921/2020) como matriz para a inteligibilidade da constituição do líder a partir da identificação primária, localizada no narcisismo.

Figura 1. A Formação do líder segundo a lógica da identificação

Fonte: Freud, 1921/2020, p. 191.

A figura 1 esquematiza a forma como um objeto externo (o traço ou insígnia de um líder) ocupa o lugar do que o eu ama como seu ideal. O êxito da constituição da massa reside na substituição entre o objeto externo e o ideal etambém na identificação de cada eu, na massa, a outros eus: “Uma massa primária como essa é uma quantidade de indivíduos que colocaram um e o mesmo objeto no lugar de seu ideal do eu e, em consequência disso, identificaram-se uns com os outros em seu eu” (Freud, 1921/2020, p. 192).

Ao observarmos a formação do líder autoritário do fascismo, situamos a ocorrência do declínio do ideal do eu com seus impactos psíquicos precisos: no caso, a assunção do líder. Por isso, o líder é considerado alguém como nós, com as mesmas preocupações, os mesmos anseios, segundo um mesmo projeto. Esse declínio do ideal do eu é da mesma natureza daquela perda do objeto localizada na melancolia (Freud, 1915/2020; 1917[1915]/2010). O esquema formaliza, ainda, como, no campo social, uma grande quantidade de indivíduos elege e posiciona um único objeto no lugar do ideal do eu, e em consequência disso:

1.Identificam-se uns com os outros em seus eus.

2.Formam uma relação de semelhantes e o sentimento de somos todos iguais.

3.Constituem a imagem unitária do povo.

4.Produzem a segregação agressiva de tudo o que se opõe a essa imagem unitária.

Essa forma de identificação é denominada de identificação imaginária com a formação do líder fascista sobre a base da identificação especular ao ideal do eu. Neste sentido, um líder autoritário, que encarna a imagem unitária do povo, se ergue como defesa narcísica, agressiva e extremamente violenta da identidade de si, sendo uma extensão do próprio eu. Avançando no campo da tipologia da identificação temos, segundo Freud (1921/2021), a situação extrema da identificação melancólica — em que o objeto se colocou no lugar do ideal do eu — com efeitos de hegemonia dos traços de humildade, hiper-responsabilização, autorrecriminação e baixa autoestima. A figura 2 reproduz o esquema elaborado por Nieves Soria Dafunchio et al. (2009), formalizando essa forma de identificação a partir do esquema que Freud elaborara em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921/2020).

Figura 2. Um esquema para a melancolização: a sombra do objeto recai sobre o sujeito

Fonte: Dafunchio et al., 2009, p. 23.

A figura 2 esquematiza a reversão da pulsão, com o abandono o investimento no objeto e retorno ao eu, revelando uma conformação subjetiva de maior radicalidade. Essa conformação subjetiva foi amplamente trabalhada por Judith Butler (2020), em A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. A autora ressalta como os estados de melancolia podem se generalizar em contextos de declínio dos ideais civilizatórios, exatamente porque a própria constituição do eu assim o permite. Butler (2020) destaca a presença de uma teoria sobre a constituição do eu nas entrelinhas de Luto e Melancolia (Freud, 1917[1915]/2010) em dois sentidos: na perda do objeto, que produz a retração do investimento afetivo sobre o eu de modo que ele passa a substituir o próprio objeto perdido; na própria constituição do eu, que é uma defesa contra a perda do objeto.

Esse ponto é muito importante para a presente pesquisa, porque indica uma variável presente como condição de possibilidade da constituição do eu: a crença de que o eu é uma instância psíquica compensatória, defensiva, em relação à perda do objeto — de tal forma que, em conjunturas políticas e sociais de grande ameaça ou perda de ideais civilizatórios, maior é a inflação narcísica, egóica, sobre a base da gestão afetiva na direção da melancolização: rebaixamento da autoestima, hiper-responsabilização, autorecriminação e autocrítica. Por esse motivo, não consideramos que a fluidez, a liquidez, sejam os traços que definem o sujeito neoliberal. Mas o sujeito unitário, narcísico, o sujeito do envolvimento total de si mesmo, o empreendedor de si.

CONCLUSÃO: O AFETO MELANCÓLICO NA BASE DOS SINTOMAS CONTEMPORÂNEOS

As considerações feitas até aqui permitem que afirmemos uma outra distinção decorrente do esclarecimento de que a melancolização é o pathos imanente à racionalidade neoliberal, e que uma série de sintomas contemporâneos hegemônicos são, na verdade, um sintoma do pathos melancolizado. Mais uma vez, o texto de Dardot e Laval (2016) é de fundamental relevância. O capítulo 9 de A Nova Razão do Mundo. Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal (2016) está dedicada a delimitação do que os autores denominam de diagnósticos clínicos do sujeito neoliberal e que nós denominamos de sintomas do sujeito neoliberal para destacar, com precisão, que eles estão em íntima conexão com a melancolização:

1.Autonomia contrariada: Essa forma de sintoma inclui os casos de estresse e assédio no ambiente de trabalho. É interessante notar como a vinculação do eu ao sucesso de si mesmo conjugado ao da empresa, ao contrário de verificar a maior consistência do funcionamento da personalidade, produz vulnerabilidade. Essa vulnerabilidade, por sua vez, é reforçada como positiva pelos manuais de gestão — exatamente por considerarem que a vulnerabilidade incentiva a competição entre empresas de si no ambiente de trabalho.

2.Corrosão da personalidade: Essa forma de sintoma está diretamente articulada ao sentimento de instabilidade e vulnerabilidade do eu, que se estende: 1. de seu ambiente de trabalho para todo o laço social, da instabilidade da carreira; 2. de sua redução ao estatuto de projetos, à toda a gama de relações sociais que se convertem em capital humano.

3.Desmoralização: É o sentimento que atravessa o sujeito empresarial que, por sua condição de empresa, deixa de se reportar às políticas de bem-estar social e é altamente responsabilizado pelo destino de sua vida. É o indivíduo que consome autoajuda, para aprimorar sua autoestima, para superar seus limites, para reforçar sua identidade como empresário de si. Também é o sujeito que nutre desconfiança pela pobreza, pela miséria, pelo imigrante. O efeito colateral advém na forma do sintoma de medo desmoralizador de, um dia, se tornarem inúteis.

4.Depressão generalizada: Conforme já aparece na desmoralização, o discurso da realização de si mesmo, do mérito, do sucesso da empresa de si, produz a segregação dos fracassados, dos perdidos, dos imigrantes, ou seja, de todos os que não se conformam à norma social da empresa de si. A insuficiência e o universo da disfunção retornam sobre o eu segundo a fórmula freudiana de que a sombra do objeto recai sobre o eu. Aqui o objeto se revela: a empresa.

5.Dessimbolização: Com o declínio do laço social, com a dissolução dos ideais que sustentam a formação do eu e seus vínculos sociais, resta ao eu se vincular à fantasia narcísica de onipotência do eu. Dessa forma, na base desta fantasia, jaz a patologia do declínio do laço social, da dessimbolização.

Assim, consideramos que na base dos sintomas contemporâneos de depressão, sofrimento no trabalho e autonomia contrariada, corrosão da personalidade, desmoralização e dessimbolização — elencados por Dardot e Laval (2016) — jaz a melancolização como pathos do sujeito neoliberal. O ataque ao Estado de bem-estar social em nome da liberdade individual sustenta a afirmativa de um influente intelectual do neoliberalismo, o economista Miton Friedman quando afirma em Capitalismo e Liberdade (2019): “Liberdade é planta rara e delicada” (Friedman, 2019, p. 2). Essa consideração exibe a importância da defesa e manutenção de um dos pilares do neoliberalismo: a dissolução do poder estatal. A descentralização do poder governamental, representado pelo Estado, se torna evidente quando nos referimos ao modelo de gestão neoliberal, assim como a dissolução na noção de público e privado (pela via de atribuição de responsabilidades). O enfraquecimento do papel intervencionista do Estado, interfere não só diminuindo a possibilidade de um governo totalitário, mas ressoa na percepção de atribuições individuais, ao que antes integrava a agenda de seguridade social. Desta forma, a lógica concorrencial regula e enfraquece as relações dentro das sociedades neoliberais.

Nossa pesquisa se arrisca a afirmar que a racionalidade neoliberal se apresenta como a materialização identitária — na figura do empreendedor de si — e como via consensual para o entendimento da necessidade da diminuição da intervenção do Estado em nome da liberdade individual. Essas considerações, lidas à luz da referência de Freud, tal como apresentamos ao longo do artigo, permitem à pesquisa identificar e reconsiderar o trabalho de Dardot e Laval (2016) e Brown (2019) sob outros termos: na base do sujeito neoliberal, da forma do empreendedor de si, jaz a inflação narcísica e seu afeto constitutivo. Conforme ficou esclarecido no artigo, a melancolização não é uma psicopatologia, uma específica forma de adoecimento contemporâneo. Ela faz parte da conformação do empreendedor de si. E, neste sentido, caberá à pesquisa conduzida junto ao PPGP/UFRJ o esclarecimento preciso desta dimensão estrutural da racionalidade neoliberal.

REFERÊNCIAS

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Butler, Judith (2020). A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Autêntica.

Dafunchio, Nieves Soria; Schejtman, Fabián; Godoy, Claudio & Eidelberg, Alejandra (2009). Porciones de nada: La anorexia y la época. Del Bucle.

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Friedman, Milton (2019). Capitalismo e Liberdade. LTC.

Novaes, Marina (2016). Brasileiros à beira de um ataque de nervos. El País. Recuperado em 05 de janeiro de 2023, de https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/15/politica/1460672392_067866.html

Safatle, Vladimir (2012). Grande Hotel Abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento. Martins Fontes.

Von Hayek, Friedrich August (2010). O Caminho da Servidão. LVM.

Von Misses, Ludwig (2015). Ação Humana. Um Tratado de Economia. Vide.

FLAVIA LAÍS MACHADO MOURA

Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia — Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGP/UFRJ). Doutoranda Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia — Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGP/UFRJ). Bolsista do CNPq.
flaviamourapsi@hotmail.com
http://orcid.org/0009-0006-5412-8052

CLAUDIA HENSCHEL DE LIMA

Professora Associada III. Departamento de Psicologia. Universidade Federal Fluminense Campus de Volta Redonda. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia — Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGP/UFRJ). Professora Permanente do PROFIAP/UFF. Coordenadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental em Estudos de Subjetividade e Emergências Humanitárias. Coordenadora do GT Psicopatologia e Psicanálise na ANPEPP.
claudialima@id.uff.br
https://orcid.org/0000-0002-7693-7321

FORMATO DE CITACIÓN

Machado Moura, F. & Henschel de Lima, C. (2024). Racionalidade neoliberal e “pathos” da melancolização: uma sinfonia melancólica do empreendedor de si. Quaderns de Psicologia, 26(3), e2036.
https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.2036

HISTORIA EDITORIAL

Recibido: 21-04-2023
1ª revisión: 10-05-2024
2ª revisión: 10-06-2024
Aceptado: 13-06-2024
Publicado: 20-12-2024