Quaderns de Psicologia | 2024, Vol. 26, Nro. 1, e2049 | ISNN: 0211-3481 |

https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.2049

O trabalho em associações e cooperativas: os empreendimentos, redes de contato e saúde dos trabalhadores

Work in associations and cooperatives: enterprises, contact networks and workers’ health

Regina Heloisa Maciel

Universidade de Fortaleza

Natália Lopes Braga

Universidade Federal do Ceará

Darli Chaine Baião
Noalia Magna Araújo
Livia Rosa de Araujo Cunha
Jessica Hannah Rodrigues Cortez
Giovanna Campos Pinheiro
Luciane Rodrigues

Universidade de Fortaleza

Resumo

Esta pesquisa buscou analisar o trabalho em associações e cooperativas de trabalho situadas no Nordeste do Brasil. Trata-se de um estudo qualitativo envolvendo doze instituições, investigadas por meio de um questionário e seis entrevistas com associados. As respostas ao questionário foram analisadas utilizando o método QCA (Análise Qualitativa Comparativa) e as entrevistas pela técnica de análise de conteúdo. Evidenciou-se a importância do apoio fornecido por atores sociais externos aos empreendimentos, mas também uma avaliação negativa da gestão. A criação desses empreendimentos se configura como uma oportunidade de trabalho e renda para a maioria dos entrevistados. Notou-se, no entanto, a falta de preocupação com a saúde dos associados e os cuidados necessários para reduzir os riscos de acidentes, incluindo a exposição frequente a materiais perigosos e contaminados, bem como incertezas, estresses no ambiente de trabalho, cargas de trabalho excessivas e conflitos interpessoais. Estes últimos podem contribuir para acidentes e doenças ocupacionais.

Palavras-chave: Trabalho Cooperativas de trabalho Saúde do trabalhador Análise Qualitativa Comparativa

Abstract

This research aimed to analyze the work in labor associations and cooperatives located in northeastern Brazil. This is a qualitative study involving twelve institutions, investigated through a questionnaire and six interviews with associates. The answers to the questionnaire were analyzed using the QCA (Comparative Qualitative Analysis) method, and the interviews were conducted using the content analysis technique. The importance of the support provided by social actors external to the enterprises was highlighted, but also a negative evaluation of the management. The creation of these enterprises is configured as an opportunity for work and income for most of the interviewees. However, there was a lack of concern for the health of associates and the necessary care to reduce the risk of accidents, including frequent exposure to hazardous and contaminated materials, as well as uncertainties, stresses in the work environment, excessive workloads and interpersonal conflicts. The latter can contribute to occupational accidents and illnesses.

Keywords: Work Labor cooperatives Occupational health Comparative Qualitative Analysis

INTRODUÇÃO

Desde o século XIX, estratégias associativas buscam propor alternativas de organização social do trabalho distintas da racionalidade capitalista (Gaiger, 2013). A fundação de um empreendimento solidário com a reunião de operários têxteis na Inglaterra, em 1844, marcou o início do cooperativismo moderno, com diretrizes de organização bem definidas, influenciando o surgimento de outras cooperativas (Souza, 2012).

As experiências de cooperativas e associações começaram a se multiplicar no Brasil a partir dos anos de 1980/1990, coincidindo com a introdução de políticas neoliberais. Tais políticas incluem a privatização de empresas estatais, reestruturação produtiva do mercado nacional frente a abertura internacional, aumento da competitividade, demissões voluntárias, enxugamento dos custos de produção, entre outras (Lima, 2009). Com o tempo, o trabalho informal deixou de ser uma questão temporária do capitalismo e passou a ser entendido como um traço estrutural do desenvolvimento capitalista, em um modelo socialmente excludente (Veronese et al., 2017).

Em praticamente todos os países existem leis que regem o cooperativismo. No Brasil, segundo a Lei 12.690 de 2012, uma cooperativa é definida como “sociedade constituída por trabalhadores para o exercício de suas atividades laborativas ou profissionais com proveito comum, autonomia e autogestão para obterem melhor qualificação, renda, situação socioeconômica e condições gerais de trabalho”. De acordo com a mesma lei, a autonomia deve ser exercida de forma coletiva e coordenada dentro da cooperativa, seguindo a autogestão como processo democrático que define as diretrizes de funcionamento e operações. Os associados possuem direitos trabalhistas (remuneração não inferior ao salário-mínimo ou proporcional às horas de trabalho, jornada laboral não superior a 8 horas diárias ou 44 horas semanais, repouso semanal e anual remunerados, seguro acidente de trabalho, entre outros). Já o associativismo possui um marco legal extremamente amplo, incluindo grupos de pessoas que desenvolvem atividades comuns e que não têm finalidade econômica (Veronese et al., 2017). Os procedimentos burocráticos e a maior complexidade administrativa fazem com que muitos coletivos de trabalho optem por se manter como associação ou até mesmo como grupo informal. Um levantamento publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicadas (IPEA), em 2016, mostrou que apenas 8,8% dos empreendimentos de economia solidária no Brasil funcionam como cooperativas (Silva e Carneiro, 2016).

Diante do crescimento significativo de grupos populares que se organizavam em torno de cooperativas e associações, pesquisadores e intelectuais passaram a adotar o termo “economia solidária” como um conceito que reúne iniciativas econômicas populares com trabalho coletivo, autogestão e adoção de práticas populares de ajuda mútua como elementos centrais (Silva, 2016). Segundo Luiz I. Gaiger e colaboradores (2018, p. 150), empreendimentos econômicos solidários são “organizações suprafamiliares, criadas e mantidas pela associação voluntária de trabalhadores, consumidores e usuários para atender necessidades e aspirações econômicas sociais e culturais comuns”.

Quatro características descrevem os empreendimentos da economia solidária: (1) caráter coletivo das experiências, (2) relações de trabalho não assalariadas, (3) exercício do controle coletivo do empreendimento e (4) inserção cidadã — participação na comunidade, respeito ao meio ambiente e articulação política com outros grupos. Os empreendimentos econômicos solidários, portanto, devem apresentar: atividade econômica (produção de bens, comercialização e prestação de serviços), compromisso social (utilidade pública e missão social, para além dos benefícios dos sócios) e gestão democrática (participação e tomada de decisões pelo conjunto de sócios) (Gaiger et al., 2018).

Um aspecto importante dos empreendimentos é o seu potencial inclusivo. Em muitos casos, há participação de idosos e de deficientes físicos, que optam pelo trabalho no empreendimento frente às dificuldades encontradas para ingressar em outras organizações laborais. Há ainda um destaque para o trabalho feminino, pois em muitas associações e cooperativas as mulheres representam a maior parte dos associados. O trabalho nesses espaços apresenta-se como uma oportunidade para mulheres, afastadas do mercado formal, além de representarem a possibilidade de realizar um trabalho mais flexível que pode ser conciliado com os afazeres domésticos (Braga, 2019).

Outro ponto que merece atenção refere-se à saúde dos trabalhadores no interior dos empreendimentos. Alguns empreendimentos acabam deixando de lado seus princípios como, por exemplo, a resistência à exploração do trabalho e conferem uma outra feição para o movimento cooperativista, levando à precarização (Oliveira, 2014). Por um lado, isso pode acarretar o barateamento dos custos de produção e de serviços, mas, por outro, acaba por impulsionar a utilização de mão-de-obra não-qualificada com trabalhadores que desconhecem os seus direitos (Piccinini, 2004) e levar à ocorrência de agravos à saúde relacionados ao trabalho, em decorrência das más condições de trabalho, falta de equipamento de segurança e jornadas excessivas. As associações e cooperativas de catadores e separadores de materiais recicláveis, por exemplo, relatam a presença de cortes e infecções decorrentes do manuseio de materiais perfurocortantes e materiais contaminados (Maciel et al., 2010, 2011). Além disso, trabalhar em cooperativas pode ser estressante, uma vez que há incertezas quanto aos ganhos advindos do trabalho e das relações socioprofissionais (Arando et al., 2015), bem como piores condições de trabalho (Grunberg, 1986) e quase nenhuma preocupação com segurança (Hanson e Boland, 2020), o que pode ocasionar maiores taxas de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho (Vasconcelos et al., 2020).

A presente pesquisa objetivou analisar o trabalho em cooperativas e associações localizadas no Ceará/Brasil. De maneira específica, buscou-se compreender os objetivos dos empreendimentos, verificar a existência de redes de apoio institucionais e verificar a saúde dos trabalhadores membros das associações.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa dividida em duas etapas. A primeira consistiu na aplicação de um questionário a associações, respondido por um de seus representantes. A segunda constou de entrevistas individuais a fim de especificar melhor alguns dos aspectos abordados no questionário.

Primeira Etapa

Participantes

Um link para um questionário foi enviado a cerca de 150 entidades, entre cooperativas e associações localizadas no estado do Ceará. Desses, obteve-se apenas 12 respostas completas. Esse fenômeno é corrente quando se estuda empreendimentos desse tipo, o que talvez tenha a ver com a falta de tempo para responder um questionário ou com a baixa escolaridade dos participantes (Figueiró e Bessi, 2020; Geiger, 2003, Lima, 2009).

Instrumento

O instrumento de coleta de dados continha questões gerais sobre o respondente: idade, sexo, escolaridade, quanto tempo trabalhava na instituição e qual cargo ocupava. Em seguida havia perguntas sobre a cooperativa/associação: nome, fundação, produtos ou serviços oferecidos e questões sobre a aplicação dos princípios cooperativistas, instituições de apoio e aspectos de seu funcionamento, bem como questões sobre acidentes e afastamentos do trabalho.

Procedimento

O questionário foi disponibilizado online através do programa Survey Monkey. Antes da aplicação, os respondentes receberam um convite (via whatsapp) contendo os principais objetivos do estudo e acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) da pesquisa, ao qual tinham de consentir antes de visualizar o questionário.

Análise de dados

Os dados obtidos foram primeiramente analisados com o auxílio do programa IBM-SPSS, para a computação de estatísticas descritivas e a preparação para a utilização desses dados em uma análise QCA (Comparative Qualitative Analysis).

A QCA foi originalmente introduzida por Ragin em 1987. O método tem sido utilizado em vários campos e é uma técnica que explora a presença de implicações lógicas em termos de condições necessárias e suficientes (Baumgartner e Thiem, 2020; Schneider e Rohlfing, 2016; Thomann e Maggetti, 2020). No caso desta pesquisa, utilizou-se como condição final a existência de acidentes e afastamentos do trabalho e como condições determinantes, variáveis construídas a partir das respostas ao questionário aplicado. Foram construídos índices compostos com os itens do questionário e estes foram transformados para a construção da Tabela Verdade (matriz de análise do QCA). A matriz foi então analisada com o auxílio do programa TOSMANA, realizando-se análises crispQCA.

Segunda Etapa

Participantes

Participaram desta etapa da pesquisa seis membros de distintas associações localizadas no Ceará. As funções dos entrevistados eram, na sua maioria, de presidente, cargo de destaque e poder de decisão dentro desses empreendimentos, conforme descrito na tabela 1.

Tabela 1. Caracterização dos participantes da pesquisa

Id

Idade

Escolaridade

Tempo de trabalho no empreendimento (anos)

Cargo/ função

P1

42

Fundamental

4

Presidente

P2

61

Médio

7

Presidente

P3

60

Fundamental

9

Presidente

P4

55

Médio

20

Presidente

P5

39

Fundamental

3

Secretária

P6

-

-

Presidente

Para a seleção dos participantes, foram utilizados contatos de associações disponíveis na internet, bem como foi utilizada a técnica bola de neve. Nesse caso, contatou-se primeiramente um membro de uma associação, o qual indicou outro colega para participar da pesquisa.

Coleta e análise de dados

Para a coleta dos dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, seguindo um roteiro de perguntas orientado para analisar as associações. A entrevista foi escolhida como instrumento por permitir uma melhor compreensão dos valores e das opiniões dos participantes a respeito das situações e vivências pessoais (Fraser e Gondim, 2004). As entrevistas foram realizadas via telefone, tendo em vista o contexto da pandemia de Covid-19, e contaram com flexibilidade em sua condução, onde o pesquisador tinha liberdade de inserir novas questões. O material obtido foi transcrito e analisado por meio de uma análise de conteúdo.

Procedimentos Éticos

Considerando os aspectos éticos referentes a pesquisas envolvendo seres humanos, de acordo com as Resoluções 466/12 e 510/16, a pesquisa como um todo foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa e foi iniciada após sua aprovação. Antes do início da coleta de dados, os participantes foram informados a respeito do anonimato e sigilo de suas respostas, da garantia do caráter voluntário da participação na pesquisa, do cumprimento dos aspectos éticos necessários e do direito de interromper a colaboração na pesquisa a qualquer momento, sem que isso implicasse em constrangimento ou prejuízo de qualquer ordem.

RESULTADOS

Análise dos Questionários

A tabela 2 apresenta as características sociodemográficas dos 12 respondentes do questionário e de suas respectivas associações.

Tabela 2. Características dos respondentes, número de associados e anos de funcionamento das instituições participantes

Id

Cargo

Idade

Escolaridade

Associados

Anos Funcionamento

Q1

secretária

18

Médio

10

13

Q2

presidente

55

Fundamental

36

20

Q3

secretária

39

Fundamental

12

9

Q4

presidente

42

Médio

50

20

Q5

presidente

61

Médio

37

7

Q6

presidente

25

Fundamental

16

8

Q7

coordenador

43

Fundamental

67

13

Q8

presidente

60

Fundamental

22

9

Q9

secretária

39

Médio

78

27

Q10

presidente

29

Médio

11

5

Q11

presidente

30

Médio

186

34

Q12

administrativo

41

Técnico

53

16

A maioria das instituições participantes foram criadas coletivamente (n=11,92%) e cerca de metade (6,50%) tiveram a participação de outros agentes na sua formação. Quase sempre esses mesmos agentes são os que prestam auxílio e apoio (órgãos governamentais, associações de caridade e empresas privadas). Dez (83%) das associações/cooperativas participantes indicaram receber apoio instrumental, sendo que 8 (67%) indicaram receber esse apoio na forma de fornecimento direto de recursos financeiros e/ou empréstimos, matéria prima, equipamentos, alimentação, lanches, cestas-básicas e recursos materiais em geral e classificam esse apoio como muito importante para o seu funcionamento. Apenas uma instituição indicou receber apoio relacional (no trabalho, na gestão, nas vendas e na mediação de conflitos) e apoio técnico (qualificações, capacitações, assessorias e treinamentos), mas não instrumental. Uma indicou receber apenas apoio técnico e duas disseram não receber apoio de qualquer natureza.

Todas as instituições entrevistadas possuem os órgãos previstos na legislação sobre cooperativas: assembleia, secretaria, presidência e tesouraria. Apenas 6 afirmaram ter um conselho administrativo; o mesmo número indicou haver assessoria fiscal; e 4 indicaram possuir assessoria jurídica.

A figura 1 mostra os resultados em índices (variação de 0 a 5) criados a partir das respostas dos entrevistados em relação à aplicação dos princípios cooperativistas, gestão, benefícios para os associados, participação na comunidade e condições de trabalho. Nota-se que os maiores índices se referem aos benefícios para os associados (M=2,75, DP=1,30) e às condições de trabalho (M=2,17, DP=0,98).

Figura 1 Médias dos índices investigados no questionário

Em relação às associações/cooperativas que oferecem remuneração fixa, a nota para essa remuneração foi M=2,75 (DP=2,09), apenas ligeiramente acima da média e a nota para aquelas que oferecem remuneração variável foi um pouco mais baixa (M=2,25, DP=1,96).

Perguntou-se também sobre o número de acidentes e afastamentos do trabalho. As associações/cooperativas que responderam a essa questão (apenas 7,58%) relataram entre 1 e 20 acidentes de trabalho por ano e a mesma faixa para afastamentos do trabalho. Das 12 instituições, 5 (42%) disseram não haver acidentes ou afastamentos.

Análise QCA

A análise QCA visou identificar quais configurações em termos dos índices calculados (aplicação dos princípios cooperativistas, gestão, benefícios para associados, condições de trabalho, participação na comunidade e funcionamento) e ter ou não apoio de outros agentes explicaria a média de acidentes e afastamentos do trabalho relatados. Para fins da análise considerou-se um índice combinado de acidentes e afastamentos (soma das respostas).

Utilizando-se o programa TOSMANA, foram calculados “limites” (tresholds) para as variáveis contínuas a fim de criar uma Tabela Verdade para a análise do tipo crisp (Crispset analysis QCA). A Tabela 3 mostra os dados originais (entre parêntesis) e o valor assumido para a análise.

Tabela 3. Tabela Verdade

Id

Apoio

Princípios

Gestão

Benefícios associados

Condições de trabalho

Participação na comunidade

Funciona-mento

Acidentes Afastamentos

Q1

1

1 (2,55)

1 (2,6)

1 (3,67)

1 (3,89)

1 (2)

1 (2,5)

1

Q2

1

0 (1,36)

0 (1,6)

0 (2)

1 (2,11)

0 (1)

0 (1,75)

1

Q3

1

1 (2)

0 (1)

1 (3,5)

1 (3,17)

1 (2,33)

1 (2,75)

0

Q4

1

1 (1,82)

1 (2)

1 (4,67)

1 (2,83)

0 (1)

0 (1,38)

1

Q5

1

0 (1,09)

0 (1,8)

1 (3,17)

1 (2,17)

1 (2)

0 (1,25)

0

Q6

1

0 (1,09)

1 (2)

1 (3,17)

1 (2,44)

0 (1)

0 (1,75)

1

Q7

1

1 (2)

0 (1,6)

0 (1,33)

1 (2,5)

1 (3,17)

1 (2,63)

0

Q8

0

0 (1)

0 (1,2)

1 (2,5)

1 (2,17)

0 (1)

0 (1,13)

1

Q9

1

0 (1)

0 (1)

0 (0)

0 (0,11)

0 (0)

0 (1)

0

Q10

1

0 (1)

0 (1)

0 (1,67)

0 (1)

0 (1,17)

0 (1)

0

Q11

0

0 (1,09)

0 (1,6)

1 (4)

0 (1,56)

0 (1,5)

0 (1)

1

Q12

1

0 (1,55)

0 (1,8)

1 (3,33)

1 (2,06)

1 (2)

0 (1,63)

1

A condição ter apoio não se configura como impeditivo para ocorrências e manifestações de acidentes e afastamentos (Q3, Q5, Q7, Q9 e Q10). Outra condição importante é o julgamento feito com relação à gestão do empreendimento. Nos casos Q2, Q8, Q11 e Q12, o julgamento negativo da gestão é acompanhado do relato de ocorrência de afastamentos e acidentes. As outras condições que se destacam em relação à ocorrência ou não de acidentes e afastamentos são: julgamento das condições de trabalho e aplicação dos princípios cooperativistas. A configuração dos casos em relação à variável resultado (afastamentos e acidentes) e as variáveis apoio, gestão, aplicação dos princípios cooperativistas e julgamento das condições de trabalho podem ser vistas na figura 2.

Figura 2. Resultados da análise QCA em relação às variáveis: apoio, gestão, julgamento das condições de trabalho e aplicação dos princípios cooperativistas

Análise das Entrevistas

Para a análise dos dados, o material obtido foi transcrito e as transcrições fo-ram submetidas a uma análise de conteúdo temática. Os resultados foram divi-didos em categorias elaboradas com base nos objetivos do estudo. As seguintes categorias emergiram do discurso dos participantes: (1) Aspectos referentes aos objetivos do empreendimento, (2) Aspectos relacionados às redes de apoio ins-titucionais, (3) Aspectos relacionados ao trabalho e à saúde dos trabalhadores e (4) Aspectos cooperativistas e suas dimensões sociais e econômicas.

Aspectos referentes aos objetivos do empreendimento

Esta categoria versa sobre os aspectos estruturais e constitutivos das associações, englobando questões sobre o processo de criação do empreendimento, suas características e os principais objetivos.

Sobre o processo de criação, os entrevistados convergiram nas respostas, afirmando que as cooperativas/associações foram criadas com o intuito de dar oportunidade de trabalho e renda para pessoas que passavam necessidade por encontrarem-se desempregadas e não possuírem nenhuma outra fonte de renda. Observa-se que, dos seis entrevistados, cinco evidenciaram o caráter social da origem do empreendimento, conforme destacado:

Encontrar uma fonte de renda e ocupação para as pessoas que trabalhavam no lixão do Aterro do Jangurussu, pois quando ele fechou as pessoas estavam passando necessidades. (P4, entrevista pessoal, outubro de 2022)

Eles quiseram fazer a associação, trabalhar juntos para poder ir pegar o material fora, aí foram para reunião e fizeram a associação, era principalmente porque o sustento é tirado através da reciclagem. (P5, entrevista pessoal, outubro de 2022)

As cooperativas e associações configuram-se como uma possibilidade de geração de renda para diferentes grupos, sendo geralmente criadas a partir de uma situação social e econômica que demanda a busca por alternativas ao mercado de trabalho tradicional e as empresas privadas capitalistas (Figueiró e Bessi, 2020).

Outro ponto interessante que merece destaque é a questão de gênero e família, bem evidenciada por três entrevistadas que destacaram o papel da mulher na criação do empreendimento e a importância do trabalho por estarem solteiras sem nenhuma renda. Por exemplo, para P3 (entrevista pessoal, setembro de 2022), a criação da associação foi pensada tendo em vista as mulheres da comunidade que sabiam costurar e fazer artesanato. Do mesmo modo, P6 (entrevista pessoal, outubro de 2022) ressaltou a importância da associação para o sustento da família por não terem acesso ao mercado formal de trabalho, ressalta que “cada uma de nós tem uma história, né? Eu vivia na rua, a M. também”.

E aí como eu já tinha o conhecimento, eu comecei a incentivar a minha mãe a trabalhar com reciclagem, e ela começou! E a gente começou a montar a associação, ela já tinha uma associação, mas era outra. Aí a gente começou a pegar carrinho, a catar, porque eu sou catadora, né? E aí ela começou a catar também. (P1, entrevista pessoal, setembro de 2022)

Observa-se que as cooperativas/associações de trabalho contribuem para transformar a constante desigualdade vivenciada por minorias sociais, como as mulheres, apresentando-se, assim, como alternativas de caráter emancipatório nas questões econômicas e políticas (Anjos et al., 2018). Além disso, essa fonte de renda proporciona às mulheres, muitas vezes solteiras, trabalho e, ao mesmo tempo, a possibilidade de conciliar a vida profissional com as atividades domésticas.

Em relação ao objetivo principal dos empreendimentos, mais uma vez, emergiram falas sobre fonte de renda e sustento de pessoas e famílias. Apesar disso, os entrevistados falaram sobre questões fundamentais para a manutenção e possível sucesso das associações e cooperativas, como a preocupação com os seus membros e com o meio ambiente. Segundo os entrevistados:

Tem o objetivo não de só arrecadar, mas de ajudar todos os associados e a comunidade que está ao seu redor e, principalmente, em ajudar o meio ambiente, que cada tonelada que nós retiramos do meio ambiente é muito importante, né? (P1, entrevista pessoal, setembro de 2022)

Promover fonte de renda para as pessoas e melhorar a vida da comunidade, além da promoção da consciência quanto à preservação da natureza. (P4, entrevista pessoal, outubro de 2022)

Melhorar o nível de vida das pessoas envolvidas e promover a educação sobre o respeito ao meio ambiente. (P2, entrevista pessoal, setembro de 2022)

Assim, os empreendimentos visam resolver problemas sociais e ambientais, buscando uma sustentabilidade financeira e a eficiência em seus processos (Comini et al., 2012). Além disso, é possível observar que o trabalho, além de ser considerado uma fonte de sustento, configura-se como uma forma do trabalhador estabelecer relações com os outros, ser parte integrante de um grupo e da comunidade, ter uma ocupação e ter um objetivo a ser atingido na sua vida (Figueiró e Bessi, 2020; Morin, 2001). No caso dos entrevistados, o objetivo parece relacionar-se ao cuidado com o meio ambiente e a possibilidade de ajudar pessoas e famílias.

Aspectos relacionados às redes de apoio institucionais

Esta categoria engloba os aspectos referentes às redes de apoio dos empreendimentos, parcerias firmadas e vinculação da associação/cooperativa a movimentos sociais.

Sobre o apoio externo recebido, os entrevistados, de modo geral, indicaram receber apoio da prefeitura, governo do estado e federal e de diversos órgãos e entidades, como a Secretaria de Empreendedorismo Social, a Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima (SEMA), o Instituto Nordeste Cidadania (INEC), Cáritas, Entidade Nacional de Eletricidade (ENEL), Petrobrás, Banco Central, Receita Federal e Correios, dentre outros. É válido ressaltar que o apoio acontece de diferentes formas como parcerias, indicações e doações, não sendo necessariamente relacionado ao recebimento de dinheiro/bolsa. Das diversas formas de apoio recebido destacam-se as doações. As falas a seguir ilustram isso:

Existem algumas entidades, né? Tem o INEC que, assim, quando a gente precisa de uma ajuda, eles dão, às vezes com cestas básicas. (P1, entrevista pessoal, setembro de 2022)

Possuímos parcerias com a Petrobrás e a ENEL no sentido de expor nosso trabalho produzido em feiras na cidade sem custo. (P3, entrevista pessoal, setembro de 2022)

Tem também parceria com entidades no recebimento de materiais recicláveis. (P4, entrevista pessoal, outubro de 2022)

A gente também recebe apoio do Banco Itaú, do Nordeste. A gente pega o material, separamos e eles ligam para a gente, de mês em mês. (P6, entrevista pessoal, outubro de 2022)

Dois entrevistados que trabalham com materiais recicláveis também ressaltaram o apoio em forma de auxílio recebido pelo Governo do Estado, no qual “cada catador recebe o auxílio catador de 300 reais por mês mediante uma produção individual de 30 kg de resíduos (P2, entrevista pessoal, setembro de 2022). Observa-se que para o recebimento do auxílio, os catadores possuem uma meta e devem prestar contas do material coletado.

Outro ponto que merece destaque é o apoio recebido de empresários vinculados a empresas privadas, conforme destacado no seguinte trecho:

Assim, a gente tem pouco apoio dos governantes, de quem eu tenho mais apoio aqui é dos empresários, não vou negar para você que eu sou muito “empresariada”, pois eles são os caras melhor para negociar, entendeu? Aí a gente não tem apoio da prefeitura, não vou mentir para você, né? (risos). (P1, entrevista pessoal, setembro de 2022)

Os entrevistados também falaram sobre a importância do apoio recebido e das redes para o desenvolvimento do trabalho:

(É muito importante). Muito, tanto meu quanto dos associados, principalmente para manter essa seção, né, sem isso, eu não conseguiria manter essa seção, não conseguiria pagar ninguém, não conseguiria repartir dinheiro. Então é um apoio fundamental, né? (P1, entrevista pessoal, setembro de 2022)

E eu diria que a gente é muito abençoado, porque é com essas parcerias que a gente está se mantendo, e a associação também. Então esse apoio é muito importante. (P6, entrevista pessoal, outubro de 2022)

É por meio do apoio da iniciativa privada e da parceria com órgãos públicos que inúmeros projetos podem ser criados, operacionalizados e executados, possibilitando mudanças nos empreendimentos, diminuição de riscos e permitindo uma melhor inclusão na sociedade (Souza e Santos, 2020). Apesar disso, um entrevistado declarou não receber nenhum tipo de ajuda e que precisa se manter apenas com a força de trabalho do empreendimento.

Nós somos só nós mesmos, tem ninguém apoiando, não, só a rede de catador que nos fornece o lugar, só isso. Mas, não tem nenhuma empresa que contata a gente, nem pessoas que têm mercantil. Tem ajuda de ninguém não. (P5, entrevista pessoal, outubro de 2022)

Ressalta-se a importância do apoio externo aos empreendimentos, seja em forma de ajuda, auxílio, doações, parcerias, etc. Todavia, é visível que, apesar de necessário, o apoio recebido de forma pontual não é suficiente, sendo imprescindível o apoio contínuo para o bom funcionamento do empreendimento (Santos et al., 2019).

Aspectos relacionados ao trabalho e à saúde dos trabalhadores

A categoria diz respeito às questões relacionadas ao trabalho e à saúde dos trabalhadores, bem como a importância dos cuidados em saúde e os afastamentos por motivo de trabalho.

Sobre os cuidados com a saúde, a maioria dos entrevistados afirmou que não existe uma rotina de acompanhamento dos trabalhadores, conforme evidenciado pelo trecho: “Não tem, viu? Não tem, não tem, não tem, é, a gente não tem um acompanhamento, não tem, não tem saúde, não, viu?! Não vou mentir para você” (P1, entrevista pessoal, setembro de 2022). O relato confirma que os trabalhadores enfrentam no desempenho das atividades em associação/coooperativa as carências de medidas de proteção à saúde (Hanson e Boland, 2020).

Quando questionados sobre o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), os participantes falaram sobre a dificuldade em comprar e manter o estoque desses materiais, bem como da dificuldade de conscientizar os cooperados/associados em relação ao uso. Os trabalhadores “Usam pouco material de segurança, seja porque não têm recursos para comprar nem recebem doações (…). Apenas tiveram uma capacitação no início da associação com a Cáritas” (P2, entrevista pessoal, setembro de 2022). De forma complementar, outro entrevistado fala sobre a dificuldade de uso, mesmo existindo a obrigatoriedade.

Olha, isso é cansativo, né, assim, todos têm que usar, a lei diz isso, para não se cortar, entendeu? Porque, às vezes, o próprio saco que a gente pega tá misturado, então tem que estar todo equipado, luvas, bota. Mas é isso, todos nós precisamos. (P6, entrevista pessoal, outubro de 2022)

Apenas um dos empreendimentos possuía os EPIs necessários e conseguiam fazer o uso correto “Não, com isso é tranquilo, a gente tem botas, quando precisa usar luva, máscara, tem! A gente tem esses EPIs” (P1, entrevista pessoal, setembro de 2022).

Esses tipos de empreendimentos expõe os trabalhadores a diversos riscos no ambiente de trabalho, tais como riscos físicos (acidentes com materiais perfurocortantes) e biológicos (materiais contaminados) (Maciel et al., 2010) e de acidentes pelo uso inadequado de equipamentos. Além disso, as condições de trabalho são precárias, envolvendo posturas e movimentos extremos e repetitivos, manuseio de pesos, jornadas extensas e falta de apoio social (Maciel et al., 2011). O conjunto desses fatores pode prejudicar a saúde dos trabalhadores. É por meio da identificação desses riscos que é possível melhorar a gestão dos empreendimentos e, consequentemente, reduzir os riscos inerentes aos processos que podem prejudicar a saúde (Souza e Martins, 2018).

Um ponto que merece destaque em relação à saúde, são os poucos afastamentos por motivo de doença relatados. Todos os participantes afirmaram que, apesar da ocorrência de alguns pequenos acidentes, os trabalhadores não costumam se ausentar de suas atividades laborais e naturalizam os acidentes ocorridos no cotidiano de trabalho, conforme os trechos de discurso a seguir.

Isso é raridade, um catador ficar ausente. (…) É raro, a gente evita muito esse negócio de acidente. (P1, entrevista pessoal, setembro de 2022)

Quanto aos acidentes de trabalho quase não temos, uma ou outra artesã fura o dedo, ou algo parecido, mas em poucas ocasiões. (P3, entrevista pessoal, setembro de 2022)

Eles não têm muita consciência de usar o equipamento de segurança, porém não temos muitos acidentes de trabalho, chegando a quase zero. (P4, entrevista pessoal, outubro de 2022)

Não, por ser só uma vez na semana, ninguém falta. Às vezes acontece algum acidente, cortes com vidro, mas nada demais. (P5, entrevista pessoal, outubro de 2022)

Acidente de trabalho já teve muito, hoje em dia nem tanto. O trânsito não respeita os catadores, algumas pessoas já foram atropeladas. Mas graças a Deus, faz tempo que isso não acontece. (P6, entrevista pessoal, outubro de 2022)

Além disso, os participantes reconhecem as dificuldades e limitações do local de trabalho e evidenciam a necessidade de melhorias, que poderiam impactar positivamente na saúde e na diminuição de riscos. Para P4 (entrevista pessoal, outubro de 2022): “sobre o ambiente de trabalho não considero muito agradável, pois hoje temos um terreno que foi doado pela minha mãe e ele é muito quente, precisamos reformá-lo, estamos procurando parcerias para isso”. Por outro lado, outra afirma que acha o local agradável, mesmo necessitando de alguns ajustes.

A nossa sede fica num prédio alugado na comunidade e é, de certa forma, agradável, acho que as pessoas gostam de estar lá para as reuniões, lanches e festinhas de comemoração. Precisamos de algumas reformas e, atualmente, estamos com parceria com o projeto “Pequeno Nazareno”. (P3, entrevista pessoal, setembro de 2022)

Para P6 (entrevista pessoal, outubro de 2022), um grande agravante à saúde dos trabalhadores é o cansaço físico, principalmente em relação aos mais velhos que se encontram mais cansados “o pior é o cansaço físico mesmo, muito ruim, a maioria que já tá com idade pra cima, sabe?”.

É válido ressaltar que um ambiente de trabalho precário também potencializa os riscos ambientais, podendo, até mesmo, aumentar as possibilidades de acidentes e comprometer a saúde e a produtividade dos trabalhadores (Souza e Martins, 2018).

Aspectos cooperativistas e suas dimensões sociais e econômicas

Esta categoria se refere às questões relacionadas ao funcionamento das cooperativas enquanto uma organização social e econômica.

Sobre o funcionamento geral das cooperativas, os entrevistados relataram alguns dos principais direitos dos cooperados, como, por exemplo, o direito ao voto e a participação em reuniões, o que pode ser observado nas seguintes falas: “Os associados têm direito a voz e voto nas decisões, conhecem o balanço financeiro e discutem os problemas que aparecem” (P2, entrevista pessoal, setembro de 2022); “As associadas participam das reuniões com direito a voz e voto” (P3, entrevista pessoal, setembro de 2022); os associados têm direito a voz e voto nas decisões, têm conhecimento de tudo que acontece e têm acesso ao balanço financeiro (P4, entrevista pessoal, outubro de 2022).

De modo geral, os empreendimentos são compostos por uma diretoria, que contempla o cargo de presidente, vice-presidente e secretários, e algumas ainda possuem cargos financeiros, como assessor financeiro ou tesoureiro. Nos empreendimentos observou-se uma gestão democrática, no qual todos os cooperados possuem igual direito ao voto e na tomada de decisões, independentemente de sua participação pelo capital. Evidencia-se, assim, valores como respeito, dignidade, responsabilidade, igualdade e solidariedade.

Outro ponto importante apresentado pelos entrevistados foi a forma como é feita a distribuição dos excedentes entre os cooperados/associados que, de modo geral, é por meio do rateio entre os integrantes. No empreendimento 2, a remuneração acontece de acordo com a produção de cada área, de forma proporcional. Além disso, destaca a entrevistada: “Cada uma ainda contribui com 10 reais por mês para custear água, energia, limpeza, café e manter um pequeno caixa para as necessidades diárias” (P2, entrevista pessoal, setembro de 2022).

Já para P3 (entrevista pessoal, setembro de 2022), os catadores dividem o valor que arrecadam com a venda do material reciclado, sendo o excedente dividido igualmente entre todos os associados. Sobre o valor arrecadado, ressalta: “Cada catador tira em torno de 200 ou 250 reais por semana”. Por outro lado, no empreendimento 4, “cada catador trabalha segunda, quarta e sexta como voluntário e recebe pelo valor do custo do material que traz” (P4, entrevista pessoal, outubro de 2022).

Observa-se que existe uma insatisfação em relação ao valor recebido, principalmente quando comparado ao volume de trabalho, conforme a fala de P1 (entrevista pessoal, setembro de 2022): “Ora, a gente trabalha mais e recebe bem menos (risos)”. De acordo com as respostas aos questionários, a insatisfação com os ganhos arrecadados no trabalho é maior quando a renda recebida é variável do que quando ela é fixa. O que é esperado dado que ter um rendimento fixo permite uma maior estabilidade ao indivíduo.

Além disso, em alguns empreendimentos, as tarefas são distribuídas de forma semelhante para todos, o que faz com que os cooperados desempenhem a mesma função. Nesse sentido, parece não existir possibilidade de crescimento profissional, conforme relatado por P2 (entrevista pessoal, setembro de 2022): “Sobre o crescimento, a única chance é se candidatar para os cargos de direção, pois a função é a mesma para todos”. Apesar disso, em alguns empreendimentos, os cooperados que fazem parte da diretoria desempenham também algumas funções operacionais, como pode ser observado na seguinte fala: “Eu dirijo carro, fecho contrato, negócio com os empresários, vou atrás de novas coletas, dirijo caminhão e tudo! Eu sou a presidente da associação, uma presidente que realmente faz tudo” (P1, entrevista pessoal, setembro de 2022).

Em relação às dimensões sociais dos empreendimentos, é possível observar o orgulho que os associados/cooperados possuem do seu trabalho, em especial do retorno que traz à comunidade. Para P3 (entrevista pessoal, setembro de 2022) o trabalho “contribui para o empoderamento de mulheres, crescimento das famílias por meio de renda, ocupação e capacitação dos jovens”.

A associação é muito importante para a comunidade, procura trabalhar com todos, embora alguns não reconheçam sua importância, mas a maioria reconhece. O lixo representa geração de emprego e renda para as pessoas. Atualmente, realizamos oficina de artesanato e sabão ecológico para adolescente e adultos, a maioria familiares de catadores. (P2, entrevista pessoal, setembro de 2022)

Desse modo, além da importância do trabalho desempenhado pelo empreendimento, existe também a produção de materiais e produtos para usufruto dos cooperados, bem como a realização de oficinas para capacitação dos integrantes e familiares.

Para P3 (entrevista pessoal, setembro de 2022), catadora de materiais recicláveis, “a coleta para alguns é lixo, mas para o catador é oportunidade de renda”. Ressalta também que a coleta representa a retirada de lixo da rua, facilitando o trabalho da prefeitura por meio da limpeza urbana, promovendo a consciência de preservação do meio ambiente e, consequentemente, da sociedade. Os trabalhadores de cooperativas de catadores prezam a divisão igualitária do lucro e demonstram orgulho do trabalho que realizam (Saueressig et al., 2021). Além disso, as cooperativas de catadores desempenham um papel essencial na coleta seletiva, já que se configuram como agentes ativos no processo de conscientização ambiental e preservação do ambiente, participando também da gestão pública de resíduos sólidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo buscou analisar o trabalho em associações e cooperativas localizadas no estado do Ceará, buscando compreender os objetivos do empreendimento, a existência de redes de apoio institucionais e a saúde dos trabalhadores membros das associações e seu funcionamento.

Nesse contexto, foi possível observar que a criação dos empreendimentos se configura como uma possibilidade de trabalho e renda para a maioria dos entrevistados. Além disso, parece existir uma preocupação com os demais membros e, especialmente, com o meio ambiente, no caso das associações de catadores, evidenciando a importância do trabalho realizado para os associados. Verificou-se, pelas respostas ao questionário, que a questão dos benefícios recebidos por meio da associação/cooperativa são os mais bem julgados. O que não se observou no caso da gestão, aplicação de princípios cooperativistas, participação na comunidade e funcionamento da cooperativa como um todo.

Foi possível verificar, tanto nas respostas ao questionário quanto nas entrevistas, a importância das redes de apoio externo aos empreendimentos que se configuram como elementos potencializadores para a realização do trabalho, seja por meio de ajuda, auxílio, doações ou parcerias. Os entrevistados reconhecem e reforçam a importância do apoio contínuo para o desenvolvimento e manutenção dos empreendimentos. Além disso, a análise QCA identificou que os apoios podem contribuir para um menor índice de acidentes e afastamentos do trabalho.

Apesar do reconhecimento das limitações e dificuldades relacionadas às condições de trabalho, não foi possível observar uma preocupação com a saúde e os cuidados necessários para a diminuição dos riscos aos quais estão expostos. Isto talvez se expresse pelo julgamento negativo da gestão dos empreendimentos, verificado nas respostas ao questionário e evidenciado como importante na determinação de acidentes e afastamentos do trabalho.

Durante a realização das entrevistas observou-se a dificuldade que os participantes tinham em falar sobre a sua saúde. Apesar disso, chamou a atenção o número reduzido de acidentes e afastamentos do trabalho relatados, o que pode estar relacionado à dificuldade que os associados têm em se afastar ou ficar um período sem trabalhar, já que recebem pelo que é realizado. Parece haver uma troca entre a sobrevivência econômica e condições de trabalho, sendo que condições de trabalho inadequadas são relevadas em função da possibilidade de se obter renda para a sobrevivência tanto do empreendimento quanto pessoal.

Observa-se também o papel social desses empreendimentos, que funcionam como geradores de renda e trabalho para população mais vulnerável e preocupam-se com aspectos ambientais, como a preservação do meio ambiente. Com base nisso, deveria existir um maior apoio a esses empreendimentos, de modo a viabilizar e potencializar ganhos sociais, ambientais e econômicos. Por fim, ressalta-se a importância de novos estudos sobre a temática, que possam investigar de forma mais aprofundada os riscos e aspectos relacionados à saúde do trabalhador.

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REGINA HELOISA MACIEL

Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia. Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia. Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre o Trabalho (LET).
reginaheloisamaciel@gmail.com
http://orcid.org/0000-0003-2933-7021

NATÁLIA LOPES BRAGA

Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia. Docente do Curso de Graduação em Psi-cologia. Pesquisadora e participante do Laboratório de Estudos sobre Trabalho (LET) e do Núcleo de Psicologia do Trabalho (NUTRA).
nataliabraga1@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-8619-7208

DARLI CHAINE BAIÃO

Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia. Docente do Curso de Graduação em Psi-cologia. Pesquisadora e participante do Laboratório de Estudos sobre Trabalho (LET).
darlibaiao@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-4548-2205

NOALIA MAGNA ARAÚJO

Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia. Docente do Curso de Graduação em Psi-cologia. Pesquisadora e participante do Laboratório de Estudos sobre Trabalho (LET).
noaliaaraujo@gmail.com
http://orcid.org/0000-0001-6888-3776

LIVIA ROSA DE ARAUJO CUNHA

Psicóloga. Mestre em Psicologia. Doutoranda. Participante do Laboratório de Estu-dos sobre Trabalho (LET).
liviarosaaraujo@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-4894-0758

JESSICA HANNAH RODRIGUES CORTEZ

Graduanda em Psicologia. Bolsista de Iniciação Científica. Participante do Laborató-rio de Estudos sobre Trabalho (LET).
jeslay@edu.unifor.br
https://orcid.org/0009-0001-2217-834X

GIOVANNA CAMPOS PINHEIRO

Graduada em Psicologia pela Universidade de Fortaleza.
giovannacamposp2000@gmail.com
https://orcid.org/0009-0002-6193-992X

LUCIANE RODRIGUES

Graduanda em Psicologia. Graduada em Serviço Social, especialista em Políticas So-ciais e em Arte Educação.
lufabricio8@gmail.com
https://orcid.org/0006-9444-4260

FORMATO DE CITACIÓN

Maciel, Regina Heloisa; Braga, Natália Lopes; Baião, Darli Chaine; Araújo, Noalia Magna; Cunha, Livia Rosa de Araujo; Cortez, Jessica Hannah Rodrigues; Pinheiro, Giovanna Campos & Rodrigues, Luciane (2024). O trabalho em associações e coope-rativas: os empreendimentos, redes de contato e saúde dos trabalhadores. Qua-derns de Psicologia, 26(1), e2049. https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.2049

HISTORIA EDITORIAL

Recibido: 05-06-2023
1ª revisión: 03-08-2023
Aceptado: 22-08-2023
Publicado: 03-04-2024