Quaderns de Psicologia | 2023, Vol. 25, Nro. 3, e1993 | ISNN: 0211-3481 |

https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1993

Mulheres em Situação de Violência por Parceiros Íntimos: Crenças, Estereótipos e Preconceito

Women in Situations of Intimate Partner Violence: Beliefs, Stereotypes and Prejudice

Monique Bernardes de Oliveira Ferreira

Universidade Federal de Juiz de Fora

Luciana Xavier Senra

Universidade Católica de Petrópolis

Lelio Moura Lourenço

Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo

Este estudo objetivou identificar crenças de mulheres em situação de violência por parceiros íntimos (VPI) relativas a esta violência e a papéis/estereótipos de gênero. Participaram trinta mulheres, que buscaram uma instituição pública de assistência e proteção à violência. Utilizou-se um roteiro semiestruturado e um questionário sociodemográfico. As entrevistas foram submetidas à Análise de Conteúdo. Os resultados apresentam-se em duas dimensões: “Crenças em relação à VPI” e “Crenças em relação a papéis de gênero”. Verifica-se que o modelo de estrutura sexista da sociedade, garante a reprodução da desigualdade de gênero e mantém ativa uma ideologia fundada nos estereótipos da força e poder masculino versus a submissão e docilidade feminina, em que a violência se faz instrumento (legitimado) estrutural e estruturante.

Palavras-chave: Violência por parceiro íntimo; Cognição social; Estereótipo de gênero; Sexismo

Abstract

This study aimed to identify beliefs of women in situations of intimate partner violence (IPV) regarding this violence and gender roles/stereotypes. Thirty women participated, who sought a public institution of assistance and protection against violence. A semi-structured script and a sociodemographic questionnaire were used. The interviews were submitted to Content Analysis. The results are presented in two dimensions: “Beliefs in relation to IPV” and “Beliefs in relation to gender roles”. It is verified that the sexist structure model of society guarantees the reproduction of gender inequality and keeps active an ideology founded on stereotypes of male strength and power versus female submission and docility, in which violence becomes a (legitimate) structural and structuring instrument.

Keywords: Intimate partner violence; Social cognition; Gender stereotyping; Sexism

INTRODUÇÃO1

A violência é um fenômeno complexo que sofre influência de fatores individuais, sociais e contextuais, assim como tende a causar prejuízos nestes. Desta forma a compreensão, prevenção e enfrentamento de suas diversas manifestações deve levar em consideração alguns elementos importantes que são subjacentes e explícitos a este fenômeno. Destaca-se a estrutura sociocultural e a cognição social. A estrutura sociocultural estabelece normas sociais e agrupa uma série de crenças e atitudes coletivamente compartilhadas, ligadas tanto ao que se entende como violência — suas motivações, o uso ou não de justificativas e aprovação ou desaprovação de suas manifestações — quanto aos padrões de relações entre grupos humanos (Gebara et al., 2011; Minayo, 2006). A cognição social, por sua vez, diz respeito a forma com que as pessoas pensam e se sentem em relação a si mesmas e aos outros. Em outras palavras, é o estudo do processo sociocognitivo de como se percebe e se compreende os demais e a si próprio (Fiske e Taylor, 2017).

A presente pesquisa se debruça sobre um recorte analítico voltado para as cognições sociais (crenças, estereótipos e preconceitos) com base na construção social de gênero e acerca da violência por parceiros íntimos (VPI). A VPI é compreendida aqui como intenções, ações e omissões que atentem contra os direitos humanos, cometidos contra alguém com quem se se mantém (ou manteve) algum tipo de relação íntima afetiva, independente de coabitação (Krug et al., 2002; Lei 11.340, 2006; Saffioti, 2011).

Crenças são representações mentais de natureza simbólica, formuladas a partir das percepções, pensamentos, racionalizações e interpretações das diversas experiências intraindividuais, interpessoais e sociais. À medida em que são formadas, vão se organizando em sistemas, que, de acordo com o alcance de sua influência, direcionam os pensamentos e condutas pessoais e coletivas. No plano pessoal, influenciam o processo de construção de identidade, orientam a adesão a papéis sociais, guiam no conhecimento do outro e de como se relacionar com ele (relações interpessoais), regem a compreensão de responsabilidades sociais, de como proceder a partir de interesses para atingir objetivos e do que esperar do futuro. Já em nível social, as crenças, que são rápida e dinamicamente difundidas, tendem a reforçar interesses, estabelecer padrões e modelos de comportamento, pensamento e expressões emocionais. Determinando preferências que nem sempre são relacionadas a reais necessidades e objetivos pessoais. A partir disto surgem estereótipos (Krüger, 2004, 2018).

Os estereótipos são crenças coletivamente compartilhadas sobre atributos, características ou traços psicológico, moral ou físico imputados a grupos sociais (tanto a grupos distintos quanto aquele ao qual se pertença) com base em marcadores sociais diversos, como gênero, raça, classe, idade, escolaridade, religião, etc. (Krüger, 2004). Para além de traços de personalidade, os estereótipos compreendem atividades e papéis, bem como ocupações apropriadas àquele grupo. O que tende a impactar profundamente as escolhas das pessoas ao longo da vida, à medida em que buscam atender às expectativas sociais (Rudman e Glick, 2021). Associam-se também à dimensão afetiva, integrando os preconceitos (Fiske e Taylor, 2017; Krüger, 2004).

As crenças em relação à VPI estão intimamente relacionadas à construção social de gênero. Esta, origina-se do sexo biológico, baseado nos cromossomos e na genitália que se possui ao nascer. Entretanto, reflete inferências culturais tais como estereótipos pautados em uma visão binária e heteronormativa, que divide as pessoas entre homens ou mulheres, como categorias fixas, inatas e fundamentalmente diferentes. Distinguindo claramente a forma em que as pessoas são socializadas e interagem entre si; ditando quais comportamentos, traços, ocupações e papéis são considerados femininos ou masculinos e punindo quem não se encaixa nas expectativas sociais. Além disso, há uma hierarquia estabelecida a partir desta divisão, que escancara diferenças de status e poder (Rudman e Glick, 2021).

No que se refere ao preconceito com base em gênero, tem-se, diferentemente de demais modalidades de preconceito, uma relação não só de domínio como também de interdependência íntima, pautada na visão binária e heteronormativa supracitada. Peter Glick e Susan Fiske (2011) teorizam sobre o sexismo (preconceito com base em gênero), como um construto de manifestações ambivalentes — Teoria do Sexismo Ambivalente (SA) — refletindo tanto uma antipatia unidirecional projetada nas mulheres (sexismo hostil — SH), de acordo com a definição clássica de preconceito (Allport, 1954), quanto uma postura idealizadora, afetiva e protecionista (sexismo benevolente — SB). Essa ambivalência molda as ideologias tradicionais de gênero, incluindo estereótipos, em três domínios: poder, heterossexualidade e papéis de gênero.

O SH pauta-se na representação da mulher como inferior ao homem e expressa intolerância quanto ao papel feminino como figura de poder e decisão. Enquanto o SB considera que as mulheres completam os homens, devendo, portanto, serem protegidas, apoiadas e adoradas, o que fornece uma racionalização confortável para confiná-las a papéis domésticos. Tradicionalmente os papéis/funções atribuídos aos homens e mulheres são complementares. Às mulheres compete as tarefas restritas ao ambiente doméstico, criação e cuidado dos filhos e da casa. Os homens devem proteger e prover a família, formando um ciclo de interdependência: Os homens necessitam das mulheres para ter um família e elas precisam deles para prover esta família (Glick e Fiske, 2011; Rudman e Glick, 2021).

As expressões do SB por serem mais sutis e até percebidas como positivas, acabam sendo aceitas e encorajadas socialmente. Entretanto, isso oculta seu potencial negativo e danoso que sustenta a condição de subordinação da mulher. O SB atua como um controle da passividade das mulheres, levando-as a depender dos homens como protetores e provedores, e reprimindo-as na busca por independência e/ou igualdade. Em essência reforça e complementa o SH, desempenhando um papel crucial na manutenção da hierarquia e desigualdade entre os gêneros. Portanto, as dimensões do sexismo ambivalente representam atitudes complementares e não conflituosas, uma vez que visam tipos diferentes de mulheres ou comportamentos distintos de uma mesma mulher (Glick e Fiske, 2011; Gölge et al., 2016). Estudos também mostram que tanto o SB quanto o SH têm influências significativas no contexto da VPI, se associando: à vitimização e perpetração da VPI; à culpabilização e julgamento das vítimas; à minimização, uso de justificativas e/ou legitimação da violência; bem como, interferindo no reconhecimento da violência (Ferreira et al., 2022). Face ao exposto, o objetivo desta investigação foi identificar crenças, de mulheres em situação de VPI, relativas a esta violência e a papéis/estereótipos de gênero.

MÉTODO

Participantes

Entre os meses de setembro e dezembro de 2019, participaram do estudo 30 mulheres cisgênero em situação de VPI, em relacionamentos heterossexuais, que buscaram uma instituição pública de assistência e proteção à mulheres vítimas de violência no município brasileiro de Juiz de Fora — MG. Trata-se de uma amostra por conveniência. Os critérios de inclusão foram: mulheres que tivessem procurado a instituição por motivos de violência especificamente no contexto de parceria íntima; em relacionamento heterossexual; com 18 anos ou mais. O perfil sociodemográfico das mesmas é apresentado na Tabela 1. Ressalta-se que os nomes aqui mencionados são fictícios.

Nome

Idade

Cor / raça / etnia

Religião

Estado civil

Filhos

Escolaridade*

Atividade profissional

Renda mensal (por salário mínimo)

Ana

45

Branca

Evangélica

União est.

2

D

Aposentada

Não sabe

Beatriz

34

Parda

Católica

Solteira

4

A

Nenhuma

Nenhuma

Bruna

42

Parda

Evangélica

Divorciada

2

F

Contadora

4 a 6

Camila

34

Parda

Evangélica

Divorciada

1

F

Enfermeira

1 a 2

Carla

54

Branca

Católica

União est.

1

F

Servidora pública

2 a 4

Carolina

41

Branca

Católica

Casada

2

D

Nenhuma

Nenhuma

Daiana

42

Branca

Católica

Casada

1

A

Babá

< que um salário

Daniela

56

Parda

Evangélica

Casada

2

A

Nenhuma

1 a 2

Eduarda

24

Parda

Nenhuma

Solteira

1

D

Balconista

1 a 2

Elaine

19

Parda

Espírita

Solteira

0

C

Nenhuma

Nenhuma

Érica

25

Parda

Evangélica

Solteira

1

A

Nenhuma

< que um salário

Fabiana

31

Branca

Nenhuma

Casada

0

G

Agente de cultura

2 a 4

Fernanda

51

Branca

Nenhuma

Divorciada

1

D

Corretora de imóveis

4 a 6

Gabriela

71

Parda

Católica

Casada

0

B

Aposentada

1 a 2

Geisa

34

Parda

Espírita

Divorciada

2

F

Desenhista industrial

4 a 6

Helena

23

Branca

Evangélica

Solteira

1

D

Nenhuma

Nenhuma

Janaína

38

Preta

Candomblé

Casada

1

D

Técnica de Enfermagem

1 a 2

Jéssica

31

Parda

Católica

Divorciada

4

F

Nenhuma

< que um salário

Júlia

30

Parda

Evangélica

Casada

2

F

Professora

2 a 4

Keila

45

Preta

Católica

Solteira

2

B

Nenhuma

Nenhuma

Laisa

32

Branca

Evangélica

Casada

2

E

Auxiliar Administrativo

2 a 4

Larissa

22

Preta

Nenhuma

Divorciada

0

D

Telemarketing

1 a 2

Marcela

35

Branca

Evangélica

Casada

2

D

Manicure

1 a 2

Maria

29

Parda

Evangélica

Solteira

1

D

Vendedora

1 a 2

Naiara

37

Branca

Evangélica

Casada

4

D

Operadora de produção

1 a 2

Paula

26

Amarela

Umbandista

Solteira

1

E

Empresária

2 a 4

Sandra

19

Preta

Nenhuma

Solteira

1

A

Nenhuma

Bolsa Família

Tamara

22

Preta

Evangélica

Solteira

5

A

Manicure

< que um salário

Tânia

41

Parda

Evangélica

Casada

1

D

Nenhuma

Nenhuma

Thelma

22

Parda

Evangélica

Solteira

1

C

Operadora de caixa

1 a 2

Nota. * Legenda Escolaridade: A – Ensino fundamental incompleto; B – Ensino fundamental completo; C – Ensino médio incompleto; D – Ensino médio completo; E – Ensino superior incompleto; F – Ensino superior completo; G – Pós-graduação.

Tabela 1. Perfil sociodemográfico das entrevistadas

Instrumentos

O protocolo de instrumentos continha: (1) Entrevista com roteiro semiestruturado composto por questões envolvendo aspectos da VPI (motivações, interferências de terceiros, permanência da mulher em situação de violência) e papéis e obrigações de homens e mulheres no relacionamento e no ambiente doméstico; bem como, um (2) questionário sociodemográfico para caracterização por idade, cor/raça/etnia, religião, estado civil, filhos, escolaridade, atividade profissional e renda. Destaca-se que as questões não investigavam apenas as experiências pessoais das mulheres, as perguntas tinham como foco a compreensão e percepção das entrevistadas acerca das dinâmicas relacionais entre parceiros íntimos como um todo.

Aspectos Éticos e Procedimentos para Coleta e Análise dos Dados

A pesquisa foi autorizada junto à coordenação da instituição parceira do estudo e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora (CAAE 07890919.2.0000.5147). As participantes foram acessadas em um momento de contato inicial com o serviço de atendimento, em dias e horários variados conforme a rotina de acolhimento institucional. Após receberem um primeiro atendimento pelos profissionais da instituição, as mulheres eram questionadas sobre o interesse/disponibilidade em participar da pesquisa.

As entrevistas, realizadas individualmente por uma das integrantes de uma equipe de cinco pesquisadoras (quatro graduandas e uma mestranda responsável pela pesquisa), ocorreram em uma sala reservada, onde ficavam presentes somente a entrevistadora e a entrevistada e eram gravadas em áudio por meio de smartphones. Todas as participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A duração das entrevistas variou entre 10 e 47 minutos. Os arquivos de áudio foram transcritos, revisados e analisados por meio da técnica de Análise de Conteúdo Categorial/Temática, proposta por Laurence Bardin (2011), com auxílio do software Nvivo.

De acordo com Bardin (2011) a análise de conteúdo envolve três polos cronológicos: a pré-análise; a exploração do material; e por fim, o tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Na pré-análise estabeleceu-se os meios (instrumentos) pelos quais seriam coletados os dados, sua organização/composição, as particularidades de como seriam analisados, além dos objetivos de cada uma das perguntas. Em seguida foram estabelecidas, a partir dos objetivos das perguntas, operações de recorte em unidades comparáveis de categorização, determinando categorias analíticas a priori. Posteriormente, ocorreu a preparação do material coletado: transcrição e revisão de cada uma das entrevistas. Finalmente, realizou-se a análise do material coletado por meio de codificações, significações e decomposições pautadas nas formulações da pré-análise, na literatura estudada e nas vivências do campo. Ou seja, as categorias finais são resultado do que foi estabelecido a priori e também de questões que foram adquiridas durante o campo e o estudo teórico.

RESULTADOS

Os resultados foram divididos nas seguintes dimensões de análise: “Crenças em relação à VPI” e “Crenças em relação a papéis de gênero”. A partir de cada uma destas, realizou-se a codificação das categorias, subcategorias (quando o caso) e unidades de registro, bem como o número de referências que cada unidade de registro recebeu (indicado entre parênteses ou direto no corpo do texto). Trechos dos relatos das participantes ilustrando a categorização foram expostos em tabelas.

Crenças em Relação à VPI

Nesta dimensão foram criadas as categorias: “Gatilhos/Motivações”, correspondente aos fatores considerados pelas entrevistadas como disparadores da VPI; “Interferências de terceiros”, que diz respeito à percepção das mulheres quanto à interferência de pessoas como familiares, amigos ou outras na relação abusiva; e “Permanência das mulheres na relação abusiva”, ou seja, fatores que possam interferir na permanência ou não das mulheres no relacionamento abusivo.

Gatilhos/Motivações

Foram feitas perguntas separadamente no que diz respeito ao que acreditam que leva os homens a agredirem as parceiras e o que leva as mulheres a agredirem os parceiros, resultando em duas subcategorias na codificação — violência dos homens contra as parceiras e violência das mulheres contra os parceiros —, como ilustra a Tabela 2. Com relação aos gatilhos da violência perpetrada pelos homens, apareceu com maior incidência a violência motivada pela ameaça ao domínio e controle masculino (n=18), que inclui ciúme/possessividade, insegurança/medo de perdê-la, meio de assegurar sua força e poderio na relação, dentre outros exemplos que retratam uma su(im)posta soberania do homem sobre a mulher, e quando esta é de certa forma ameaçada, a violência é utilizada como ferramenta para consolidá-la. Além disso, foram citados: fatores emocionais e de relacionamento interpessoal (n=9), como descontrole emocional/psicológico e dinâmica da criação e da relação familiar; uso de álcool e drogas (n=6); e falta de Jesus (n=1). Cinco entrevistadas alegaram não saber ou não entender o que motiva esta violência.

Dentre os gatilhos das agressões das mulheres contra os parceiros, o que constou na grande maioria das respostas foi a autodefesa ou a agressão em resposta a uma violência previamente sofrida (n=21). Os demais elementos mencionados foram: descontrole emocional/psicológico (n=5); ciúme (n=4); uso de álcool e/ou drogas (n=2); falta de Jesus (n=1); falta de amor (n=1); e quando percebem que os filhos estão, de alguma forma sendo atingidos, levando a mulher a agredir o parceiro em defesa deles (n=1). Uma das entrevistadas disse que as mulheres não conseguem agredir os homens.

Subcategorias, unidades de registro e “n” de referências

Exemplos

Violência dos homens contra as parceiras

Dominação e controle (n=18)

“Principalmente ciúme. Sentimento de posse, aquela coisa de ‘se ela for minha, ela não pode ser de mais ninguém’… É patrimônio sabe” (Thelma, entrevista pessoal, setembro de 2019).

“Raiva, porque às vezes a mulher não faz o que ele quer, aí eles sente que quer mandar na mulher, quer se o dono da pessoa… ‘Eu mando e pronto acabou’” (Naiara, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Fatores emocionais e de relacionamento interpessoal (n=9)

“Ele não teve pai e hoje não tem mãe presente. Então eu acho que essa desestrutura familiar, sabe?… Ele depositava tudo em mim, tipo assim, eu era mãe dele” (Thelma, entrevista pessoal, setembro de 2019).

“Desequilíbrio emocional. A questão da falta do caráter mesmo da pessoa” (Paula, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Álcool e/ou drogas (n=6)

“Eu acho interfere muito em questão de droga, de tá alcoolizado” (Maria, entrevista pessoal, dezembro de 2019)

Falta de Jesus (n=1)

“Falta de Jesus mesmo na vida” (Maria, entrevista pessoal, dezembro de 2019).

Violência das mulheres contra os parceiros

Autodefesa (n=21)

“A questão delas já está cansada de sofrer agressões, a questão dela já de fato não aguentar mais, às vezes falar, pedir pra ir embora, pedir distância e acabar literalmente tendo um surto e atacar a pessoa pra poder se defender, às vezes de uma própria agressão física” (Paula, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Descontrole emocional/psicológico (n=5)

“Eu acho que o descontrole mesmo emocional seria o fato mais forte pra isso né?!” (Bruna, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Ciúme (n=4)

“Ah, acho que ciúmes também, né?! Que tem umas mulheres que tem um ciúmes muito exagerado” (Elaine, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Álcool e/ou drogas (n=2)

“Bebida, tudo isso né?! droga, pode ocasionar, eu acredito” (Bruna, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Violência das mulheres contra os parceiros

Falta de amor (n=1)

“Eu acho que também falta de amor, porque eu acho que na lei ninguém devia colocar a mão em ninguém, ninguém devia machucar ninguém” (Érica, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Em defesa dos filhos (n=1)

“Eu nunca pensei em agredi-lo… mas quando eu vi que começou a afetar os meus filhos, eu teria coragem. Então, eu acho que pra mulher é mais assim, é, a gente é muito mãe né, muito leoa, acho que quando mexe com o filho” (Júlia, entrevista pessoal, novembro de 2019).

Mulher não consegue agredir um homem (n=1)

“Mulher não aguenta agredir um homem, eu acho … coitada da mulher se não souber sair correndo fazer alguma coisa, eu acho que o homem tem força” (Daiana, entrevista pessoal, dezembro de 2019).

Tabela 2. Categoria Gatilhos e Motivações da VPI

Interferência de Terceiros

Quatorze das participantes consideram como positiva a interferência de familiares, amigos, vizinhos, entre outros, em situações de VPI, como uma forma de auxiliar a mulher a sair dessa situação. Além disso, afirma-se que, em alguns casos, quem está “de fora” consegue ter uma percepção mais ampla e realista da situação do que os membros do casal, o que tende a contribuir para alertar e fornecer ajuda. Todavia, também é apontada certa contingência quanto ao envolvimento de outras pessoas (n=7), alegando ser difícil que terceiros entendam os sentimentos implicados na relação, e que tal interferência, em alguns casos, pode mais atrapalhar do que auxiliar. Por fim, outras sete participantes são totalmente contrárias a interferências de outras pessoas. Ver Tabela 3.

Unidades de registro e “n” de referências

Exemplos

Positiva (n=14)

“Ah, eu penso que tá agindo, tá entrando por bem, né. Pra não ver uma tragédia acontecer, igual acontece em vários feminicídio. Acho que é por bem” (Érica, entrevista pessoal, setembro de 2019).

“Quem tá de fora vê melhor… Tem que ter ajuda, senão a mulher não consegue sair” (Camila, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Contingente (n=7)

“Nem sempre é bom… Eu já tive caso do pai dele interferir… vizinhos interferir… E passou alguns meses eu colocar ele pra dentro de novo, eu acreditar, por causa do sentimento, que ele mudou. E os de fora num sabe isso… num tem o mesmo sentimento” (Marcela, entrevista pessoal, outubro de 2019).

“Tem as que interferem pro lado bom e as que interferem pro lado ruim né?!… Tipo, as que chegam pra abrir os olhos, te mostrar que existem outros caminhos, que você pode dá conta, que tão ali pra te dar força. E tem as que, outras que não, que acha que você tem que continuar ali… porque foi criado assim, porque é assim” (Júlia, entrevista pessoal, novembro de 2019).

Não é bem-vinda (n=7)

“Um saco, porque cada um tem uma opinião formada de um jeito… E várias pessoas né, parente [diz]: ‘aah, tenta mais uma vez’, ‘ah, não deixa isso acontecer’, ‘poxa, um casal tão bonito’. Todo mundo tem uma justificativa, mas na verdade a dor é só sua… Cada um pensa de um jeito e ninguém resolve seus problemas” (Laisa, entrevista pessoal, dezembro de 2019).

Tabela 3. Categoria Interferência de Terceiros

Permanência das Mulheres na Relação Abusiva

Quando questionadas sobre fatores que possam interferir na permanência ou não das mulheres no relacionamento abusivo, as respostas incluíram vários elementos em conjunto, como ilustra a Tabela 4. A dependência financeira do parceiro (n=13) foi a mais comentada. Ademais, foram referidos: gostar do parceiro e ter esperanças de que ele mude e cesse com os comportamentos agressivos (n=10); medo do que o homem é capaz de fazer (n=10); receio pelo julgamento das pessoas, pelos preconceitos pautados em crenças culturais que de alguma maneira sustentam (justificam ou normatizam) a VPI e colocam a mulher como dependente da figura masculina (n=9); a preocupação com os filhos, sobretudo com a criação dos mesmos (n=7); a falta de rede de apoio/suporte, principalmente de familiares (n=5); comodismo e falta de amor próprio (n=3); algumas mulheres que gostam de apanhar, ser xingadas e humilhadas (n=1); falta de consciência de que está sofrendo violência (n=1); e a depressão, que dificulta a mulher de enfrentar a situação (n=1).

Unidades de registro e “n” de referências

Exemplos

Dependência financeira do parceiro (n=13)

“Às vezes a mulher depende do homem também, tem medo de enfrentar a vida, assim de não conseguir trabalho … e fica aguentando aquilo … porque não tem opção, não tem pra onde ir, não tem ninguém pra ajudar” (Naiara, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Gostar do parceiro e ter esperanças de que ele “mude” (n=10)

“Às vezes ela gosta e acha que o parceiro vai mudar, porque ele muitas vezes fala, mas acaba não mudando” (Jéssica, entrevista pessoal, novembro de 2019).

Medo do que o homem é capaz de fazer (n=10)

“Medo … porque se ela for falar com alguém, e alguém for falar com ele, ele vai ficar muito mais nervoso e correndo risco da mulher até ser morta” (Elaine, entrevista pessoal, setembro de 2019).

“O medo né, do cara fazer alguma coisa com você, te prejudicar em alguma coisa” (Naiara, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Crenças que sustentam a VPI; julgamentos, preconceitos (n=9)

“São preconceitos que a gente põe na cabeça da gente … ‘o que que as pessoas vão pensar de mim?’ … Foi mais por causa da minha mãe que eu continuei casada e por causa da religião” (Carolina, entrevista pessoal, outubro de 2019).

“Existe uma cultura ainda de que a violência é uma coisa moderna, que agora qualquer coisa é violência e que a gente que é mulher tem que se sujeitar mesmo. Uma mulher hoje viver separada, gente, é muito complicado … a gente ainda sofre muito preconceito” (Bruna, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Preocupação com os filhos (n=7)

“Medo de criar os filhos sozinho, não só no financeiro, no psicológico, medo de que que os filhos pode vir a pensar” (Marcela, entrevista pessoal, outubro de 2019).

Falta de apoio/suporte (n=5)

“Eu só saí depois que minha mãe me apoiou mesmo de verdade. Então talvez uma falta de apoio, um suporte ali” (Júlia, entrevista pessoal, novembro de 2019).

Comodismo e falta de amor próprio (n=3)

“Falta de amor próprio … Como que a gente vai permanecer com uma pessoa que bate, xinga, que humilha? Se a gente num vê o que a gente merece, que somos de valor, ninguém vai fazer isso não” (Maria, entrevista pessoal, outubro de 2019).

Gostar de apanhar, ser xingada e humilhada (n=1)

“Umas falam que é amor, outras porque gosta. Gostar de apanhar, gostar de ser xingada, humilhada” (Érica, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Falta de consciência de que está sofrendo violência (n=1)

“O primeiro fator é ela não acreditar que ela tá sendo violentada … eu não sei se o cara, ele aproveita da fragilidade psicológica que a gente tem, eu não sei o que que acontece, eu só sei que é muito difícil da gente perceber … Então a gente sempre justifica a violência” (Bruna, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Depressão (n=1)

“A depressão também te ajuda né, a não ir, você para, você estaciona” (Carolina, entrevista pessoal, outubro de 2019).

Tabela 4. Categoria Permanência das Mulheres em Situação de Violência

Crenças em Relação aos Papéis/Estereótipos de Gênero

Nesta dimensão de análise estão presentes as categorias: papéis/estereótipos atribuídos as “Mulheres”; papéis/estereótipos conferidos aos “Homens”; e “Papéis igualitários”, referente à perspectiva de que homens e mulheres têm os mesmo papéis e obrigações no relacionamento e no ambiente doméstico, tanto no que diz respeito às tarefas a eles inerentes quanto ao cuidado dos filhos.

Mulheres

No que concerne aos estereótipos atribuídos às mulheres, revelaram-se subcategorias referentes à: inferioridade/fragilidade em relação aos homens; carência de proteção dos homens; obrigações e papéis no relacionamento e em casa; e obediência aos parceiros. Quanto à inferioridade/fragilidade em relação aos homens, nove entrevistadas acreditam que as mulheres são mais sentimentais/frágeis emocionalmente comparadas aos homens, quatro destas relacionaram tal questão à violência psicológica perpetrada pelo parceiro, que as levam a crer que são inferiores ou mais frágeis que eles. A questão física também é apontada por 12 participantes, quatro destas unindo com a vulnerabilidade emocional e oito elencando a fragilidade física como única. Sete respondentes alegam que as mulheres não são mais frágeis nem inferiores que os homens de nenhuma maneira, algumas destacam ainda que há algumas mulheres que são conformadas e aceitam essa posição de inferioridade que lhes é imputada, dando a entender que se trata de uma imposição cultural.

Com relação à necessidade de as mulheres serem protegidas pelos homens, 16 das respondentes afirmaram que as mulheres carecem desta proteção, algumas no sentido de proteção como um sinônimo de carinho, outras enfatizando uma relação mais hierárquica, em alguns casos baseadas em preceitos religiosos. Nove delas acreditam que as mulheres não necessitam da proteção masculina. Algumas destacaram que as mulheres conseguem se defender sozinhas e uma frisa que é de respeito dos homens que elas precisam.

No que se refere à obediência aos parceiros, a grande maioria das respondentes (n=27) consideram que as mulheres devem respeito a seus parceiros, obediência não. Uma delas fala sobre a má interpretação de preceitos religiosos, que naturalizam a crença de que as mulheres devem ser submissas e obedecerem aos homens, mas que não é exatamente isso que diz a bíblia. Apenas três assentiram com essa necessidade da obediência da mulher para com o homem.

Já acerca dos papéis e obrigações da mulher no relacionamento e no ambiente doméstico, foi elencado por 10 entrevistadas que as mulheres devem cuidar da casa, dos filhos e dos parceiros. Cinco destas, mencionam a necessidade de conciliar as tarefas domésticas com trabalho remunerado fora de casa. Sendo que duas destacaram que as mulheres devem ajudar/auxiliar o parceiro financeiramente quando este não tiver condições sozinho. Além disso, foi indicado como papel das mulheres, estabelecer uma relação de boa convivência/companheirismo com o cônjuge (n=5), sendo amigas, carinhosas, dividindo dores e alegrias. Conforme a Tabela 5.

Subcategorias, unidades de registro e “n” de referências

Exemplos

Inferioridade/fragilidade

Mais sentimentais/frágeis emocionalmente (n=9)

“Elas são frágeis … A mulher, ela age com sentimento, o homem não, o homem age por impulso” (Marcela, entrevista pessoal, outubro de 2019).

“Acho que por tanto, sabe, abuso psicológico, parece que sim [somos mais frágeis]. Faz acreditar que sim” (Thelma, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Mais frágeis em força física (n=8)

“Eu acho que a fragilidade da gente tá no físico, não no emocional ou em outra situação” (Bruna, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Mais frágeis física e emocionalmente (n=4)

“Física e na mente também, que tem homi que consegue, entrar na mente da gente fácil” (Beatriz, entrevista pessoal, novembro de 2019).

Nem mais frágeis nem inferiores que os homens (n=7)

“Nem mais nem menos, a gente é igual. A gente pode fazer tudo, sem depender, e também não sei porque que a gente tem isso na cabeça de que a gente tem que depender de um homem” (Júlia, entrevista pessoal, novembro de 2019).

“É isso que eles querem que elas pensem [que as mulheres são inferiores ou mais frágeis que os homens] e muitas, como eu, pensam assim, mas nós não somos … Hoje eu posso dizer que não porque eu tô aqui, né … eu consegui” (Carolina, entrevista pessoal, outubro de 2019).

“Tem umas que é mais quietas… que é mais já conformadas e eu não sou conformada” (Gabriela, entrevista pessoal, dezembro de 2019).

Proteção dos homens

Carecem da proteção masculina (n=16)

“Protegidas com carinho né … cuidado. Não uma proteção exagerada que te impede de, assim proteger de colocar debaixo da asa igual eu vivi não” (Carolina, entrevista pessoal, outubro de 2019).

“Deus não criou a mulher pra viver sozinha, eu acho que a gente tem que ter um companheiro pra gente ser feliz, ser completo, você tem que ter uma pessoa do seu lado … [O homem deve] proteger, respeitar, amar, cuidar” (Naiara, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Conseguem se defender sozinhas (n=9)

“A mulher mesmo pode se proteger, não precisa de homi pra nada” (Sandra, entrevista pessoal, setembro de 2019).

“Nãão … Ela tem que ser respeitada!” (Laisa, entrevista pessoal, dezembro de 2019).

Obediência aos parceiros

Devem respeito apenas (n=27)

“Ele é dono dela? Num é dono dela. Ela deve satisfação, ela deve respeito, ela deve companheirismo, obediência não … ela num é cachorro” (Laisa, entrevista pessoal, dezembro de 2019).

“Aí caí na submissão né … tem muita gente que cresceu assim, até mesmo na igreja a gente escuta muito isso, de que a mulher tem que ser submissa, que tá na bíblia” (Júlia, entrevista pessoal, novembro de 2019).

“A bíblia fala de submissão … existe uma, uma falsa interpretação da Palavra. A submissão no sentido do versículo bíblico ele não fala de se submeter, ele fala no contexto de andar junto, de auxiliadora, que o marido ele tem que proteger a esposa… mas a mulher não deve obediência ao marido, não vejo dessa forma não” (Bruna, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Necessitam obedecer aos parceiros (n=3)

“Com certeza [a mulher deve obediência ao parceiro]… A mulher tem que ser sábia. Eu num sou mulher de usar shortinho na rua não, entendeu? Se eu vou na padaria eu coloco uma calça comprida” (Ana, entrevista pessoal, outubro de 2019).

Obrigações e papéis no relacionamento e em casa

Cuidar da casa, dos filhos e parceiros (além de “trabalhar fora” para algumas) (n=10)

“A mulher como sempre tá em casa, ela faz de tudo, lava, passa, cozinha … trata bem o marido, cuida dos filhos. O marido chega e não tem problema … quando ele chegar pra descansar não ter o que falar na cabeça dele, não ter o que reclamar” (Daniela, entrevista pessoal, setembro de 2019).

“Cuidar do lar, cuidar dos filhos, ter o seu trabalho, cuidar bem do marido, cuidar de si própria … nós temos a função de mãe, esposa e de mulher que trabalha fora, então você tem que achar tempo pra essas três coisas” (Carolina, entrevista pessoal, outubro de 2019).

“A mulher é ajudadora … hoje o marido não tem dinheiro pro pão, ela vai lá compra o pão … ‘poxa o dinheiro do meu esposo não sobrou pra pagar a conta de luz’, ela vai lá e vai poder pagar uma conta de luz. Não que seja uma obrigação, mas que ela seja uma ajudadora, que ela não deixa o homi tá por baixo, se sentir mal ‘poxa, minha esposa ganha muito mais que eu’, humilhar” (Marcela, entrevista pessoal, outubro de 2019).

Estabelecer uma relação de boa convivência/companheirismo com a parceira (n=5)

“Ser parceira, amiga, fiel, companheira, dividir o choro, as dores, as alegrias” (Laisa, entrevista pessoal, dezembro de 2019).

Tabela 5. Categoria Papéis e Estereótipos Atribuídos às Mulheres

Homens

Quanto aos homens, as perguntas se referiam aos papéis e obrigações relativas ao relacionamento e no ambiente doméstico. De forma bastante próxima ao que foi apontado também como papel das mulheres, priorizou-se a boa convivência/companheirismo com a parceira e com os filhos (quando o casal tem filhos), o que se traduziu em “ser um bom marido” e “ser um bom pai” — não brigar/agredir, ser respeitoso, amoroso, carinhoso, ajudar, conversar (n=13). Além disso, sete entrevistadas indicaram que os homens devem ser provedores financeiro da casa e da família (n=7). Como pode ser observado na Tabela 6.

Unidades de registro e “n” de referências

Exemplos

Estabelecer uma relação de boa convivência/companheirismo com a parceira e os filhos (n=13)

“Ajudar sua mulher, amar sua mulher, ser parceiro, ser amigo, companheiro, dividir dores, problemas” (Laisa, entrevista pessoal, dezembro de 2019).

“Ser um bom marido, que é não brigando com a mulher … ser um bom pai, zelar pelos filhos, orientar os filhos, não chegar já metendo a porrada” (Jéssica, entrevista pessoal, novembro de 2019).

Provedores financeiro da casa e da família (n=7)

“Cumprir com as contas, com as compras de casa” (Ana, entrevista pessoal, outubro de 2019).

“Meu pai tem o papel de homem porque ele bota, né, as coisa dentro de casa” (Elaine, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Tabela 6. Categoria Papéis e Estereótipos Atribuídos aos Homens

Papéis Igualitários Entre Homens e Mulheres

Nove das respondentes acreditam que homens e mulheres têm os mesmos papéis e obrigações no relacionamento e no ambiente doméstico, devendo haver uma divisão igualitária entre os membros do casal. Aponta-se inclusive sobre a necessidade de questionar a divisão desigual de tarefas por gênero. Entretanto, em algumas das respostas (n=6) houve certa contradição no que foi falado em relação aos papéis de homens e mulheres no relacionamento e no ambiente doméstico. Apesar de defenderem a igualdade, ainda assim, destacavam tarefas específicas ou mais apropriadas à mulher ou ao homem. Como exemplifica a Tabela 7.

Unidades de registro e “n” de referências

Exemplos

Mesmos papéis e obrigações no relacionamento e em casa (n=9)

“A gente tinha uma noção de família, né, de antigamente que foi passada pelos nossos avós, pelos nossos pais … Não acho que se tenha papéis e obrigações. Tudo que se faça dentro de um casamento, dentro de uma casa, dentro de um lar, tem que se fazer em conjunto. Não tem essa que a mulher lava roupa, cozinha, passa, guarda, cuida dos filhos, o homem sai pra trabalhar, volta do trabalho, toma banho, come, dorme e assim não” (Janaína, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Contradições (n=6)

“Hoje em dia que existe muito isso, a mulher trabalhar pra ajudar o homem, mas o chefe da casa é o homem … Eu acho que tem que ser tudo dividido, despesas, tudo dividido … [O homem] é o provedor né? É impor respeito. Igual no meu caso, tava sendo o contrário, eu tava sendo o homem e mulher, marido e mulher (Tânia, entrevista pessoal, novembro de 2019).

“Com relação aos filhos, eu vejo que o papel é totalmente diferente … eu vejo que as mulheres elas tem essa questão com os filhos de dialogar muito, com mais facilidade do que os homens, de entender as dificuldades … acho que esse papel materno ele é muito forte na mulher, que não desobriga o homem da paternidade … A maternidade com a paternidade, acho que existe uma diferença bem grande” (Bruna, entrevista pessoal, setembro de 2019).

Tabela 7. Categoria Papéis Igualitários Entre Homens e Mulheres

DISCUSSÃO

Esta investigação buscou identificar crenças, de mulheres em situação de VPI, relativas a esta violência e a papéis/estereótipos de gênero. Nas crenças das participantes sobre gatilhos/motivações da VPI fica evidente a concepção da dominação do homem sobre sua parceira, que quando não se subordina aos seus desejos e ordens ou quando ameaça a hegemonia masculina é punida com violência (Minayo, 2005; Rudman e Glick, 2021). Consonante com achados de outros trabalhos que abordam crenças em relação à VPI e destacam questões como: não obedecer ao homem, recusar sexo, ir a algum lugar sem a sua permissão e suspeita de infidelidade da mulher, como motivações para a violência dos homens contra a parceira (Mayorga e Valera, 2009; Morse et al., 2012; Perrin et al., 2019; Zakar et al., 2013). Isso é reflexo de estruturas socioculturais binárias e heteronormativas que compartilham de crenças patriarcais e sexistas: Aos homens se estabelecem estereótipos de poder, força e autoridade, sobretudo em relação às mulheres; a estas compete a submissão e fragilidade em relação aos homens, e quando essas expectativas não são atendidas, a hostilidade sexista, bem como a violência, não sendo percebida como tal, se fazem ferramentas naturalizada de correção e contenção, para mantê-las em uma posição inferior (Glick e Fiske, 2011; Gomes et al., 2005; Rudman e Glick, 2021; Saffioti, 2011).

Nutre-se uma “cultura de honra”, que reflete o valor das pessoas perante a sociedade e a si mesmo, portanto a honra deve ser preservada. Para os homens, esta se traduz em posturas rígidas, violentas, de bravura e coragem, bem como bom desempenho na vida sexual e laboral. No caso das mulheres, associa-se a fidelidade e castidade (Rudman e Glick, 2021; Zanello, 2018). Culturas que sustentam valores de honra veem as mulheres como propriedade dos homens, e de acordo com ideais benevolentes eles devem defendê-las de outros homens, salvaguardando a honra de ambos. Entretanto, em consonância com o SH, isso aumenta a violência às mulheres que prejudicam a reputação e honra de seus parceiros, por meio da infidelidade, seja ela real ou apenas a suspeita da mesma (Rudman e Glick, 2021). Logo, o uso da violência busca resgatar ou manter a honra (Zanello, 2018). O que vai ao encontro da indicação das entrevistadas da presente pesquisa acerca da violência do parceiro motivada pelo ciúme.

Porém, apesar da defesa da honra fundamentar a socialização masculina, o ciúme se apresentou também como motivação para a violência das mulheres contra os parceiros. Uma possível explicação para tal, é o fato de que, de acordo com alguns autores, esta lógica independente de ser assimilada por homens ou mulheres, fundamenta-se no androcentrismo, desta forma o gênero da dominação patriarcal é masculino (o estereótipo masculino), não importando quem esteja ocupando tal posição (Oliveira et al., 2017; Saffioti, 2011).

Michael Johnson (2006), propõe padrões distintos de violência e apresenta, junto de colaboradores, reflexões sobre diferenças de amostragem e limitações metodológicas nas pesquisas sobre VPI, que fomentam a não correspondência da perpetração desta violência por homens e mulheres (Johnson, 2006; Johnson et al., 2014; Kelly e Johnson, 2008). A violência baseada no controle coercitivo é denominada de “terrorismo íntimo”. Trata-se de uma violência em que se tenta assumir o controle geral sobre a vítima, por meio de intimidação, abuso emocional, minimização da violência, isolamento e culpabilização, uso das crianças como ameaça, abuso econômico, entre outros. Segundo o autor é um padrão mais grave e muito mais comum em relacionamentos heterossexuais em que o homem é o perpetrador. Um segundo padrão seria a “violência de resistência”, quando a vítima se transforma em perpetrador(a) em resposta a um abuso coercitivo, para se defender, discordar ou interromper a conduta do agressor. É frequentemente identificada em contextos nos quais as mulheres são perpetradoras em resposta a seus parceiros, não tendo como motivação o controle sobre a vítima (Johnson, 2006). Por fim, a “violência situacional”, de acordo com o autor, é aquela que ocorre em situações específicas de tensão entre o casal, se estendendo à agressão verbal e em última instância à violência física, a fim de solucionar ou finalizar o conflito. Não se enquadra em um padrão de poder, coerção e controle em todo o relacionamento, sendo mais comumente identificada de forma equiparada entre os gêneros.

Michael Johnson (2006, 2008) destaca a importância de se identificar e distinguir esses tipos de VPI, uma vez que há diferenças entre causas, padrões, desenvolvimento, consequências e formas de intervenção de cada uma. A violência baseada no controle coercitivo (terrorismo íntimo) é mais propensa de ser identificada em dados provenientes de amostras em abrigos de mulheres, programas de tratamento/assistência a vítimas de violência, relatórios policiais e salas de pronto atendimento/emergências. Já pesquisas de larga escala, utilizando grande amostras tendem a exibir resultados de simetria de gênero na perpetração da VPI, uma vez que abrangem, na maioria da vezes, casos de violência situacional, que é geralmente mais comum e normalizada socialmente, o que não traz muita relutância na admissão pelas vítimas e perpetradores, como no terrorismo íntimo, em que o agressor e a vítima têm medo da descoberta e possível retaliação (Johnson, 2006; Johnson et al., 2014; Kelly e Johnson, 2008). Posto isto, embora alguns estudos considerem a simetria de gênero na perpetração da VPI, existem fortes evidências de que há uma clara desproporcionalidade na gravidade da violência sofrida por homens e mulheres em relacionamentos íntimos, indicando que as mulheres em relações heterossexuais encontram-se em maior perigo de violências graves que resultam em danos críticos e feminicídio (Barros e Schraiber, 2017; Berke e Zeichner, 2016; Breiding et al., 2015; Dobash e Dobash, 2004; Krug et al., 2002; Rudman e Glick, 2021; World Health Organization, 2013). Além disso, evidencia-se as diferenças gendradas nas motivações da VPI.

Em concordância com o que foi supracitado, as falas das participantes retratam a dinâmica do “terrorismo íntimo” perpetrado pelos parceiros e da “violência de resistência” como autodefesa. Destaca-se que o questionamento sobre as motivações que levam as mulheres a agredir os homens teve como propósito provocar reflexões acerca desta não simetria de gênero na VPI. Ademais, é importante considerar uma diferença de contexto na construção das crenças das participantes. Quando abordamos a violência do parceiro contra a mulher, as crenças são fomentadas pelas experiências das mesmas de vitimização, trata-se de crenças de mulheres que sofreram violência. Já no que se refere à motivação da violência da parceira contra o homem, as crenças não traduzem uma experiência vivida, uma vez que alegam explicitamente que não cometeram tal violência, tratando da mesma como algo externo, em suposição a uma realidade não vivenciada por elas.

A dinâmica de dominação masculina e submissão feminina permeia todos os elementos aqui abordados. O medo do que homens são capazes de fazer (em função das evidências de seu potencial em causar danos) e dos preconceitos e “julgamentos sociais” que estigmatizam as mulheres em situação de violência (sobretudo aquelas que buscam um meio de se livrar desta situação), se revelam como grandes barreiras para a tentativa de pôr fim ao relacionamento, o que é sustentado pela literatura (Baragatti et al., 2019; Mayorga e Valera, 2009; Morse et al., 2012; Perrin et al., 2019). Há trabalhos que identificaram um risco maior de violência quando as mulheres procuravam ajuda externa ou a separação (Araji e Carlson, 2001). Além disso, muitas vezes esses preconceitos, indicados pelas participantes, se apoiam em princípios religiosos (Morse et al., 2012; Perrin et al., 2019; Zakar et al., 2013). Durante algumas entrevistas foram citados, em momentos variados, problemas que o mau uso da religião pode acarretar; como a naturalização da submissão das mulheres e a necessidade da manutenção da família (e do casamento) acima de tudo. Conforme pontua Heleieth Saffioti (2011, p. 88):

A pressão que fazem a família extensa, os amigos, a Igreja etc., no sentido da preservação da sagrada família. Importa menos o que se passa em seu seio do que sua preservação como instituição. Há, pois, razões suficientes para justificar a ambiguidade da mulher, que num dia apresentava a queixa e, no seguinte, solicitava sua retirada. Isto para não mencionar as ameaças de novas agressões e até de morte que as mulheres recebiam de companheiros violentos.

Alguns estudos indicam que quando buscam ajuda para se livrar ou enfrentar o problema da VPI, as mulheres acabam dando preferência para familiares e amigos e só em última instância, procuram instituições especializadas em oferecer esse tipo de assistência (Krug et al., 2002; Sagot, 2000). Muitas vezes, essa busca por ajuda acontece quando se desperta a consciência de que o parceiro provavelmente não mudará suas atitudes, ou quando os filhos começam a ser criticamente afetados (Krug et al., 2002). Nossos resultados corroboram com essas informações, uma vez que a esperança de mudança por parte do parceiro (por ainda gostar dele) e a preocupação com os filhos foram apontadas como fatores que levam as mulheres a permanecerem por mais tempo no relacionamento permeado por violência.

A busca por apoio em familiares, amigos e ou pessoas próximas se reflete ainda na percepção positiva da interferência de terceiros nas situações de VPI, apontada por metade das participantes, como algo que pode ajudar a mulher a enfrentar aquela situação. Entretanto, condiz também com crenças que sustentam, justificam e normatizam a VPI, e que as mantém na relação abusiva, tendo em vista que, segundo as entrevistadas, essa interferência pode se pautar em crenças sobre a “necessidade” da mulher se dedicar em manter a família e o matrimônio.

A dependência financeira, indicada como fator inibidor na busca por ajuda para sair da relação de VPI, retrata as diferenças de poder nos papéis tradicionais de gênero, em que o homem ganha dinheiro no mercado de trabalho e a mulher trabalha de graça em casa. As divisões gendradas de trabalho nas relações íntimas afetivas (idealizadas pelo casamento) dificultam a independência das mulheres e as tornam vulneráveis (Rudman e Glick, 2021), mesmo daquelas que possuem uma ocupação profissional para além dos cuidados domésticos.

Considerando que as mulheres foram vistas por um terço das entrevistadas como responsáveis pelos afazeres domésticos (cuidar da casa dos filhos e do parceiro) e sete delas atribuíram ao homem o papel de provedor/protetor da casa e da família (o que representa papéis complementares dentro da lógica — sexista — de divisão por gênero das tarefas), quando se analisa mais profundamente, nota-se que apenas duas participantes consideraram que a mulher deve exclusivamente cuidar da casa e dos filhos enquanto os homens exercem atividades remuneradas para sustentar a família. Muitas das entrevistadas trabalhavam fora de casa (dois terços delas) ou já eram aposentadas (duas) e defendiam que as mulheres no geral também o fizessem. Posto isto, se faz mister refletir sobre a dupla/tripla jornada imputada às mulheres. Ou seja, além de serem responsáveis por cuidar da casa e dos filhos, também trabalham fora.

Em 2019, mulheres brasileiras, a partir dos 14 anos, despenderam uma média de 21,4 horas semanais com cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos, enquanto para os homens a média foi de 11 horas, quase metade do tempo das mulheres. Essas horas são ainda maiores quando se leva em consideração o recorte de cor/raça, sendo de 22 para mulheres pretas e pardas. Somado a isso, os achados mostram que mulheres que necessitam conciliar trabalho remunerado com os afazeres e cuidados domésticos, em muitos casos acabam por trabalhar em ocupações com carga horária reduzida (até 30 horas semanais): 32,7% das mulheres pretas ou pardas e 26% das mulheres brancas se ocuparam desta forma, em 2019. Já os homens, somente 13,5% dos brancos e 17,2% de pretos trabalhavam por tempo parcial. Além disso, as mulheres recebem 77,7% do que recebem os homens em termos de rendimentos médios de trabalho. Essa diferença aumenta em ocupações com salários maiores, como diretores e gerentes e profissionais das ciências e intelectuais, grupos nos quais as mulheres receberam, respectivamente, 61,9% e 63,6% do rendimento dos homens. Estes dados refletem a segregação ocupacional e discriminação salarial das mulheres na divisão sexual do trabalho (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2021).

De forma mais profunda, observa-se que mesmo que a mulher exerça essa dupla/tripla jornada, em muitos casos, sua atividade remunerada além de não ter o mesmo valor, em termos de rendimento é também desvalorizada no sentido de importância, visto que é possível notar em algumas falas que o trabalho remunerado da mulher seria para ajudar o homem quando ele não consegue prover sozinho a casa e a família. Portanto, ainda que se valorize a participação da mulher no mercado de trabalho, até mesmo como garantia de independência e empoderamento, nem sempre essa atividade tem a mesma importância do que quando feita pelo homem.

Nesse sentido, embora se perceba nos discursos de várias entrevistadas o anseio e defesa da igualdade de papéis, direitos e deveres entre homens e mulheres, ainda se pode notar estereótipos de gênero e preconceitos sexistas que direta ou indiretamente vão de encontro a isso. Observa-se, por exemplo, a classificação da mulher como mais frágil ou inferior aos homens por um grande número de entrevistadas, apenas cinco negaram essa submissão. A carência de proteção por parte dos homens também foi defendida pela maioria delas, além disso, como mencionado anteriormente, um terço das participantes acredita que é dever da mulher cuidar da casa e dos filhos. Esses achados são consonantes com o SB. Que apesar de aparentar se remeter ao cuidado e proteção, atua complementando, apoiando e sobretudo justificando a desigualdade de gênero, levando a um comportamento paternalista para com as mulheres no relacionamento (também nos ambientes de trabalho e demais âmbitos da vida em sociedade), o que afeta profundamente sua autoconfiança e desempenho, uma vez que sutilmente parceiros sexistas benevolentes guiam a mulher em como ela deve lidar com seus objetivos de vida (Glick e Fiske, 2011; Gölge et al., 2016; Rudman e Glick, 2021).

Estudos transculturais mostram que quanto maior as desigualdades de gênero de uma sociedade, maior será a percepção das mulheres de que os homens representam uma ameaça, bem como maior a defesa destas ao SB (Glick et al., 2000; 2004). Ou seja, a medida em que percebem os homens, enquanto grupo, como uma ameaça hostil, tendem a buscar um parceiro que representará proteção paternalista em relação aos demais, o que aumenta a adesão ao SB. O endossar do SB leva às mulheres a aceitarem o status quo de gênero, justificando as relações assimétricas como justas. Em consequência, isto reduz a resistência delas à desigualdade. Sumariamente, o SB pode fornecer um suposto alívio ao medo das mulheres, porém a proteção masculina é altamente contingente (principalmente quando as mulheres desafiam os papéis tradicionais) e custa-lhes a igualdade e a redução de independência (Ferreira et al., 2022; Rudman e Glick, 2021). Conforme Laurie Rudman e Peter Glick (2021), somente quando as mulheres tiverem oportunidades iguais de segurança, proteção e sustento financeiro, elas serão realmente livres para rejeitar o SB.

Percebe-se em vários depoimentos o processo de reestruturação de crenças, que em muitos casos levaram anos, pelas quais as mulheres passam até perceberem a real situação de abusos que vivenciavam e buscarem ajuda. Crenças essas que por vias diretas e indiretas legitimam, normatizam, naturalizam, justificam e sustentam essa violência. Encaixa-se aqui também o que foi discutido anteriormente sobre os fatores que contribuem para a permanência da mulher em uma relação de violência.

Os achados aqui apresentados revelam — apesar das mudanças sociais das últimas décadas conquistadas pelas mulheres, sobretudo pelos movimentos feministas, e que garantiram avanços e ampliações de seus direitos —, que o modelo de estrutura sexista da nossa sociedade, constitui-se de normas que transformam diferenças biológicas em categoriais sociais binárias, formadas por papéis/estereótipos femininos e masculinos. Garantindo assim a reprodução da desigualdade de gênero e mantendo ativo uma ideologia cisheteronormativa fundada nos estereótipos da força e poder masculino versus a submissão e docilidade feminina.

Posto isso, a violência é dentro desta dinâmica social um instrumento (legitimado) estrutural e estruturante. Cabe ainda reforçar que durante a construção deste trabalho, uma das intenções foi salientar questões importantes e sutis relativas ao sexismo presente nas crenças socialmente compartilhadas, que permeiam o fenômeno da VPI. Ao utilizar a Teoria do Sexismo Ambivalente para iluminar as análises, não se tem a pretensão de confirmar o modelo teórico sobre sexismo em relação ao gênero, mas ilustrar o quão este ainda permanece cristalizado no padrão sociocognitivo e afetivo da sociedade, sobretudo das participantes, refletindo ambivalência e dicotomia de papéis assimétricos na participação e protagonismo sociocultural e econômico. Sendo assim, quando se aponta que o sexismo está presente nos discursos das mulheres é por identificar que elas estão socializadas nesta estrutura de dominação, assim como os homens ou quaisquer pessoas, sendo todas, todos e todes prejudicados. Como salienta Heleieth Saffioti (2011, p. 35):

O sexismo prejudica homens, mulheres e suas relações. O saldo negativo maior é das mulheres, o que não deve obnubilar a inteligência daqueles que se interessam pelo assunto da democracia. As mulheres são “amputadas”, sobretudo no desenvolvimento e uso da razão e no exercício do poder. Elas são socializadas para desenvolver comportamentos dóceis, cordatos, apaziguadores. Os homens, ao contrário, são estimulados a desenvolver condutas agressivas, perigosas, que revelem força e coragem.

Neste ponto, é importante ressaltar, que os estereótipos e preconceitos, assumem contornos interseccionados pela identidade de gênero, classe, raça, nível educacional, orientação sexual, dentre vários outros marcadores sociais. Ou seja, deve-se compreender a particularidade das experiências das mulheres e o quanto a soma destes marcadores agravam progressivamente as dificuldades, a opressão e a marginalização (Azambuja e Nogueira, 2007; ONU Mulheres, 2010; Saffioti, 2001).

Em suma, cabe reconhecermos as limitações da presente produção. Primeiramente, deve-se considerar a possível influência da desejabilidade social nas respostas das entrevistadas, ou seja, a distorção dos relatos para uma direção que parece ser mais aceitável e desejável naquele contexto ao respondente (Gouveia et al., 2009). Investigar em um futuro trabalho as crenças de homens autores de violência, pode ser também uma maneira de completar e verificar de forma mais abrangente a pertinência das análises aqui propostas, ficando como estímulo para próximas investigações. Assim como, uma abordagem interseccional das variáveis, com foco mais amplo para demais marcadores sociais, como raça e classe, poderia proporcionar uma compreensão mais extensa e aprofundada da temática. Todavia, acredita-se que este estudo possa contribuir para aprofundar as reflexões acerca do assunto, bem como servir como inspiração para futuras pesquisas e elaboração de estratégias de enfrentamento à violência contra as mulheres.

REFERÊNCIAS

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Azambuja, Mariana P. R. de & Nogueira, Conceição (2007). Violência de gênero: uma reflexão sobre a variabilidade nas terminologias. Saúde Em Debate, 31(75-76-77), 97-106. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406345310010

Baragatti, Daniella Y.; Rolim, Ana Carine A.; Castro, Cristiane P. de; Melo, Márcio C. de & Silva, Eliete M. (2019). Rota crítica de mulheres em situação de violência: revisão integrativa. Revista Panamericana de Salud Pública, 43, e34. https://doi.org/10.26633/rpsp.2019.34

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MONIQUE BERNARDES DE OLIVEIRA FERREIRA

Doutoranda e Mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental pela Universidade José do Rosário Vellano (UNIFENAS). Psicóloga pela UFJF.
moniqueberolifer@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-7648-7570

LUCIANA XAVIER SENRA

Doutora e Mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Neurociências e Psicologia Aplicada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPB). Psicóloga pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, atualmente UniAcademia. Professora do Mestrado e Graduação em Psicologia da Universidade Católica de Petrópolis (UCP/RJ).
senra.lx@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5058-1574

LELIO MOURA LOURENÇO

Pós Doutor em Estudos da Criança pela Universidade do Minho - Portugal. Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Psicologia Social pela Universidade Gama Filho. Professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2.
leliomlourenco@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-3664-7335

FORMATO DE CITACIÓN

Ferreira, Monique B. O.; Senra, Luciana X. & Lourenço, Lelio M. (2023). Mulheres em Situação de Violência por Parceiros Íntimos: Crenças, Estereótipos e Preconcei-to. Quaderns de Psicologia, 25(3), e1993.
https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1993

HISTORIA EDITORIAL

Recibido: 12-01-2023
1ª revisión: 01-04-2023
2ª revisión: 19-04-2023
Aceptado: 24-04-2023
Publicado: 05-12-2023

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1 Este trabalho é baseado na dissertação de mestrado em Psicologia da primeira autora, defen-dida em outubro de 2020, na Universidade Federal de Juiz de Fora.