Quaderns de Psicologia | 2023, Vol. 25, Nro. 2, e1934 | ISNN: 0211-3481 |
https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1934
Letícia Lorenzoni Lasta
Betina Hillesheim
Leticia Holderbaun
Caroline Couto
Universidade de Santa Cruz do Sul
Resumo
Neste artigo objetivamos problematizar o campo de forças que compõe as práticas psicológicas e as normativas das políticas públicas no âmbito da Assistência Social. Para tanto, tomamos o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) como analisador de tal política, com o objetivo de propor algumas provocações à Psicologia e à própria Assistência Social. Trata-se de uma pesquisa documental que utiliza, como grade analítica, o conceito foucaultiano de governamentalidade, tomando como materialidade de análise o documento “Orientações Técnicas sobre o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família” volume I (2012) e os impasses gerados pelos recentes cortes orçamentários, que, em parte, inviabilizam o Sistema Único de Assistência Social. Diante disto, as provocações apontam para o que pode emergir do encontro entre a Psicologia e o SUAS, dos desafios às possibilidades engendradas entre esses campos, que se constroem imbricados à racionalidade neoliberal e aos processos de in/exclusão brasileiros.
Palavras-chave: Psicologia; Assistência Social; In/exclusão; Governamentalidade
Abstract
In this article, we problematize the field of forces involving psychological practices and public policy guidelines in the domain of Social Assistance. For this purpose, we take the Service of Protection and Integral Support to the Family as an analyzer of this policy and raise questions regarding the fields of Psychology and Social Assistance. In this documentary research, the Foucauldian concept of governmentality works as an analytical grid. The materials of analysis consist of the document “Technical Guidelines Regarding the Service of Protection and Integral Support to the Family”, volume I (2012), plus the standoffs caused by recent budget cuts, which partially hinder the Unified System of Social Assistance (SUAS). In light of this, our provocations highlight what can emerge from the encounter between Psychology and the SUAS, considering both the challenges and possibilities engendered by these fields, which are interwoven with neoliberal rationality and processes of in/exclusion in Brazil.
Keywords: Psychology; Social Assistance; In/exclusion; Governmentality
Neste trabalho objetivamos analisar as Orientações Técnicas sobre o PAIF (Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família), volume I (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS] & Secretaria Nacional de Assistência Social [SNAS], 2012), dez anos após as publicações, de modo a produzir algumas provocações à Psicologia e à Assistência Social. Argumentamos, nesse sentido, que o encontro entre a Psicologia e o SUAS produzem desafios e possibilidades aos dois campos, que se constroem imbricados à racionalidade neoliberal e aos processos de in/exclusão brasileiros.
A constituição do campo socioassistencial no Brasil é marcada pelas transformações dos cenários político-econômicos brasileiros, tendo assumido configurações distintas ao longo do seu percurso histórico. Mediante a passagem de um viés filantrópico e benemerente para o firmamento da Assistência Social enquanto um direito social, cujo marco inaugural foi a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado passou a ser incumbido da garantia de condições mínimas de sobrevivência à população brasileira. É, portanto, no solo de uma racionalidade política pautada pela noção das condições mínimas, bem como pelas noções de direito e cidadania que se assentam as bases para a construção da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no país.
Com a Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro passou a fundamentar-se por meio “da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, do pluralismo político” (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988/2001, p. 3). A partir do texto constitucional, houve mudanças no modo de compreender a Assistência Social no Brasil, pois esta passou a ser pensada conjuntamente com a saúde e a previdência social, compondo o chamado tripé da seguridade social brasileira. Dessa maneira, a marca é um deslocamento na direção de direito e cidadania, que nos remete à trama de uma dada racionalidade política, econômica e cultural que se faz presente em nossa atualidade — a trama do acesso a mínimos sociais capazes de assegurar um padrão de sobrevivência e de vida aos indivíduos e às famílias.
Tais deslocamentos são recentes na história do país e estão expostos às mudanças discursivas que constituem a própria noção de Assistência Social. Apenas em setembro de 2004, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS, 2005), por meio da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) e do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), cumprindo as deliberações da IV Conferência Nacional de Assistência Social, ocorrida em 2003, materializa as diretrizes da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS, nº 8742 de 1993), aprovando em forma de documento a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e possibilitando a implementação do SUAS, em 2005, como um instrumento para a unificação das ações da Assistência Social em território nacional.
A Resolução n. 145 (Conselho Nacional de Assistência Social [CNAS], 2004) da PNAS afirma que a proteção social deve garantir a segurança de sobrevivência (de rendimento e autonomia), acolhida e convívio (vivência familiar), ou seja, no modelo vigente no país, a proteção social passa a ter três funções explicitadas: a proteção social, a vigilância social e a defesa de direitos socioassistenciais. Portanto, a proteção social é entendida em tal contexto como um importante instrumento de política pública para enfrentar a exclusão social, a desigualdade e a pobreza. A partir disto, a Política Pública da Assistência Social, vem a ter caráter universal, ainda que seletivo, ou seja, ela não se direciona a todos, indistintamente, mas apenas para quem dela necessite (Cruz e Guareschi, 2009). Tal caráter seletivo pauta-se, portanto, na condição de vulnerabilidade de determinados sujeitos e grupos sociais.
A Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (MDS e SNAS, 2009/2014) traz uma questão que merece destaque. Ao tratar da organização dos níveis de complexidade da proteção social, sinaliza a necessidade do trabalho social se dar na perspectiva da proteção social proativa e da proteção social integral, com a finalidade de garantir “segurança à acolhida, segurança de convívio ou vivência familiar, comunitária e social, segurança de desenvolvimento de autonomia individual, familiar e social” (p. 35), por meio da articulação em rede entre os serviços socioassistenciais.
A partir desse contexto, são estratégias importantes no âmbito do SUAS: 1) o Serviço de Atenção Integral à Família (PAIF), desenvolvido nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), o qual tem como objetivo apoiar as famílias, prevenindo a ruptura de laços, promovendo o acesso a direitos e contribuindo para a melhoria da qualidade de vida e 2) o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), ofertado nos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), que busca apoiar, orientar e acompanhar famílias com um ou mais de seus membros em situação de ameaça ou violação de direitos, com o objetivo de preservar e fortalecer os vínculos familiares e com a comunidade, bem como fortalecer a função protetiva das famílias. Em ambos, o profissional da psicologia está previsto na equipe mínima.
Desde então, muitos trabalhos refletem as movimentações, interpretações e posicionamentos que, historicamente, marcaram a entrada da Psicologia no campo das políticas públicas. Estes estudos sinalizam que os psicólogos(as), cujas formações até então endossavam a construção da Psicologia como normalizadora e individualizante, deparam-se com coletividades, com heterogeneidades que perpassam a vida cotidiana, com a complexidade e as sutilezas dos processos de desigualdade que se sustentam em torno de categorias de exclusão, das quais determinadas parcelas da população acabam por estar mais vulneráveis às classificações, tratamentos, intervenções e interdições (Barros e Josephson, 2005/2007; Freitas, 2007; Macedo et al., 2011; Prado Filho e Martins, 2007). Assim, consideramos que, em certa medida, as histórias da Psicologia e da Assistência Social, ao se encontrarem, passam por transformações e mudanças implicadas uma na outra, de modo a uma possibilitar uma infinidade de indagações e provocações à outra, e vice-versa.
E o espaço onde esse encontro se dá precisa ser marcado: o Brasil, cuja história colonial, a jovem democracia e a inscrição nos recentes movimentos conservadores, têm implicações significativas nos modos de ser da Assistência Social, na qual a Psicologia se faz presente. Na contramão da tendência de fortalecimento das políticas sociais que vinha ocorrendo nas gestões presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, as movimentações político-econômicas dos últimos anos, a partir de meados de 2016, inauguraram um cenário de desinvestimento nas políticas sociais como medida de redução de gastos estatais. De acordo com Maria Rosenilde Santos Aragão e Michelle Marry Costa Campos Hora (2019), a continuidade dessas ações — implementadas pela gestão de Michel Temer e pela gestão 2019-2022 do ex-presidente da república, Jair Bolsonaro, marca um processo de desmonte dessas políticas, o que impacta diretamente a execução da PNAS.
Tendo em vista tais questões, o presente artigo toma como materialidade de análise o documento Orientações Técnicas sobre o PAIF (Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família), volume I (MDS e SNAS, 2012), dirigido a técnicos, gestores, conselheiros e trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o qual objetiva a qualificação das práticas profissionais, de forma a garantir o acesso das famílias à proteção e aos direitos socioassistenciais. Considerando que se passaram dez anos da publicação deste documento e que se vive, no Brasil, o fortalecimento de políticas neoliberais e os efeitos de recentes cortes orçamentários, buscamos problematizar o campo de forças que compõe as práticas psicológicas e as normativas das políticas públicas no âmbito da Assistência Social. Para tanto, utilizamos como grade analítica o conceito foucaultiano de governamentalidade, entendendo, a partir de Carlos Noguera (2009), que este conceito se constitui como uma noção metodológica, isto é, uma ferramenta que opera sobre um problema, tensionando o pensamento e nos forçando a pensar de outros modos.
Assim, como procedimento de análise utilizamos da matriz pós-estruturalista do pensamento foucaultiano, a qual é tomada como uma possibilidade de se pensar o presente e ao tempo disso constitui-se como uma escolha de subversão as formas tradicionais de pensar. Este lugar de análise, afigura-se como estratégia ético-política comprometida em repensar constantemente o que produz e problematizar os efeitos dessas produções no social, tal como afirmam em seus trabalhos Simone Maria Hunning e Andrea Cristina Coelho Scisleski (2018) e Fernanda dos Santos Cavalheiro e Marcos Adegas de Azambuja (2020).
Desse modo, utilizamos como referencial teórico e metodológico os Estudos Foucaultianos, em especial no que tange à atitude crítica e aos processos de governo, uma vez que ocorrem ao mesmo tempo e são apontados por Michel Foucault (1990/2005) como algo que foi possível exercer a partir dos séculos XV e XVI no Ocidente. Assim, as noções de Governamentalidade e Biopolítica tratadas por Foucault como conceitos, conduzem a problematizações referentes às estratégias de Governo e às suas relações com a segurança, a população e o território.
Cabe registrar que por governo, Foucault (1978/2008) entende “a conduta da conduta”, ou seja, uma forma de atividade dirigida a produzir sujeitos. A governamentalidade, por sua vez, dirige-se a “assegurar a correta distribuição das ‘coisas’, arranjadas de forma a levar a um fim conveniente para cada uma das coisas que devem ser governadas” (Marshall, 1994, p. 29, grifo do autor). Dito isto, operacionalizamos a noção de governamentalidade como a conjugação de uma racionalidade política com um conjunto de tecnologias de poder que, no contexto de racionalidade política neoliberal, coloca em funcionamento uma maquinaria que produz modos de existência.
As reformas trabalhista e previdenciária, as privatizações do aparelho público e, ainda, a Emenda Constitucional — EC 95/2016, que instituiu o congelamento de gastos públicos para os vinte anos posteriores à sua aprovação, são apenas algumas das medidas político-econômicas que ocorreram no Brasil na última década. Como efeitos, vimos a inviabilização da “execução e ampliação de várias políticas sociais” (Aragão e Hora, 2019, p. 124), bem como a diminuição de garantia de acesso a direitos para a população. Nesse contexto, a Assistência Social foi diretamente impactada pelos ajustes fiscais, uma vez que estes acarretaram “profundos cortes no orçamento de 2018 para o SUAS, de mais de 99% nas ações de estruturação da rede e manutenção de serviços de assistência social” (Aragão e Hora, p. 130).
Kamilla Lockmann (2010), no início da última década, discutia a política social assistencial como uma estratégia biopolítica de governamentalidade, a partir do que Foucault (1978/2008) trata no curso do Collège de France (1977-1978) Segurança, Território e População, acerca dos deslocamentos e desbloqueios das artes de governar, iniciando pelas práticas pastorais, passando pela emergência da razão de Estado e chegando às formas contemporâneas de governamentalidade — o liberalismo e o neoliberalismo. Por meio disso, a autora apontava para a vinculação entre inclusão social, risco, seguridade e governamentalidade que se estabelecia no país naquele período.
Nikolas Rose (1989/1999) refere duas características marcantes para que se possa governar uma população:
Em primeiro lugar, o governo depende do conhecimento. Para se governar uma população é necessário isolá-la como um setor da realidade, identificar certas características e processos próprios dela, fazer com que seus traços se tornem observáveis, dizíveis, escrevíveis ... Em segundo lugar, governar a população exige conhecimento de um tipo diferente. Para se fazer cálculos sobre uma população é necessário enfatizar certos traços daquela população. (p. 36)
O “conhecimento de um tipo diferente” que Rose (1989/1999, p. 36) menciona é a estatística, a qual torna possíveis as práticas de governamento. É a estatística que possibilita calcular os riscos e os acidentes a que uma população está exposta; por meio desse conhecimento prévio, passa a ser possível intervir com diferentes estratégias que objetivam gerenciar os riscos produzidos pela miséria, pela fome, pelo desemprego, pela doença, pela velhice, pela deficiência, pela vulnerabilidade social, entre outros, e garantir a seguridade social, a proteção social (Lockmann, 2010).
Dessa forma, podemos entender que as políticas de assistência social permitem que se produza um conhecimento sobre esses usuários, até então pouco visíveis. Este movimento é que marca a abrangência de determinados grupos sociais no âmbito daquilo que Lockmann (2020) discute como um imperativo de inclusão. Trata-se de uma discursividade que não apenas aposta na inclusão como estratégia de governamento, ou seja, de análise e escrutínio e regulação dos modos de vida, mas que a eleva ao nível do inquestionável, tornando-a um imperativo estatal. São princípios fomentados por uma razão política centrada na noção de democracia e na promoção da cidadania, prevalecentes no país a partir da década de 1980. Mas, de acordo com a autora, tais princípios vêm sofrendo significativas mudanças a partir de meados de 2016, quando se instaura o processo de desmonte das políticas sociais.
Como expressão desse cenário, consideramos que as políticas de inclusão “não garantem o inverso da exclusão, ou seja, não garantem uma inclusão permanente desses sujeitos, como se tivéssemos cruzado a linha de chegada do verdadeiro projeto inclusivo” (Lockmann, 2020, p. 71). Desse modo, considera-se que a inclusão e a exclusão são dois eixos de uma só dinâmica, os quais se distribuem em um gradiente de diferentes modos e níveis de participação e acesso aos diversos domínios sociais. Assim, a autora justifica o uso do binômio in/exclusão para designar a mobilidade desses processos, em que ora a inclusão, ora a exclusão são mais fortemente acionadas como estratégias de governamento para os distintos grupos sociais. É importante marcar, ainda, que as estratégias inclusivas não rompem com os princípios da lógica de mercado, mas, ao contrário, ancoram-se firmemente em uma racionalidade neoliberal, que pressupõe que todos possam fazer parte dos jogos de consumo.
Com o desmonte em curso das políticas sociais, o que observamos hoje é uma exacerbação das tensões, no campo socioassistencial, no tocante à execução da política e à escassez de recursos direcionados para a proteção social. Retomando a discussão de Lockmann (2020), compreendemos, com a autora, que o cenário de desinvestimento social sinaliza tensionamentos na noção de inclusão enquanto imperativo. Trata-se de um contexto em que as práticas de inclusão estariam perdendo força diante da reemergência das práticas de exclusão de alguns grupos sociais, assentadas em uma faceta conservadora que se sobressai nas atuais práticas de governo, e que, aliada aos princípios neoliberais, faz emergir o que a autora nomeia como governamentalidade neoliberal conservadora. Nesse sentido, ao mesmo tempo que se preservam as políticas econômicas neoliberais, não ocorre o mesmo investimento na capacidade de participação econômica dos mais variados grupos sociais. No lugar disso, aposta-se na desproteção de muitos desses grupos, os quais “devem desaparecer socialmente, ou pelo menos, terem suas participações limitadas e ajustadas ao modelo instituído de vida e de ordem” (Lockmann, 2020, p. 72).
Dados do balanço orçamentário 2019-2021, sistematizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC, 2021), indicam que vários setores foram impactados pelo desfinanciamento das políticas públicas durante a gestão de Jair Bolsonaro. Tal desfinanciamento é apontado no relatório, que elenca 4 movimentos, dos quais destacamos dois:1) o desmonte das instituições públicas, exemplificado pelos cortes nos recursos para o enfrentamento da pandemia de COVID-19 que, em 2021 caíram 79% em relação a 2020; na área da assistência para crianças e adolescentes, que perdeu 149 milhões entre 2019 e 2021; e na educação infantil que viu seu orçamento diminuído mais de quatro vezes em apenas três anos; 2) a morte deliberada de corpos considerados indesejáveis, que pode ser interpretada na diminuição dos recursos, por exemplo: os investimentos para a promoção da igualdade racial diminuíram mais de oito vezes entre 2019 e 2021, para as ações voltadas às mulheres os investimentos caíram 46% em 2021, as verbas destinadas ao sistema socioeducativo diminuíram cerca de 70% entre 2019 e 2021. Em geral, são expressivas as quedas nas execuções financeiras das políticas garantidoras de direitos humanos e sociais. Isso pode ser explicado também pela PEC 55 de 2016, do Teto de Gastos, que congelou o orçamento até 2036, mas não se restringe a ela:
Há intenção deliberada de deturpar a máquina pública para justificar processos de privatização, ou de apropriação privada de bens e serviços públicos, e reformas que resultem em menor intervenção do Estado. São inúmeros os exemplos: o fechamento de diversos espaços de interlocução entre governo e sociedade, o aumento da opacidade das informações públicas, o adiamento do Censo DemoGráfico, o Programa Nacional de Imunização — PNI, que em plena pandemia ficou meses sem direção; os atrasos na vacinação contra o novo coronavírus evidenciados durante a CPI da Covid; a gestão errática do Auxílio Emergencial, a extinção do Bolsa Família e a criação do Auxílio Brasil envolto em incertezas; as confusões em torno do Enem; o desmonte do Ministério das Cidades; o enxugamento da Petrobras e do BNDES; o enfraquecimento dos órgãos ambientais de fiscalização; as tentativas de venda da Eletrobrás e dos Correios; e o grande acordo feito entre o Executivo e o Legislativo para destinar bilhões de reais à base aliada do governo por meio do Orçamento Secreto. (INESC, 2021, pp. 14-15)
Cabe, portanto, nos interrogarmos: diante dos tensionamentos entre inclusão e exclusão, entre as diferentes estratégias de governamento neoliberais, de que modo as práticas psicológicas no âmbito do PAIF se articulam e atuam sobre as distintas formas de condução de condutas?
Como discutimos a partir de Rose (1989/1999) e Lockmann (2010), à medida que se delimita um recorte populacional conhecível, este mesmo grupo torna-se governável, em outros termos, torna-se possível gerenciar os riscos implicados nas condições de vulnerabilidade social a partir do acionamento de distintas estratégias de governamento. Nesse cenário de análise do presente artigo, no âmbito da Assistência Social brasileira, foram propostas ações e programas voltados para uma determinada população: grupos marcados por situações de pobreza, miséria e vulnerabilidade. Nessa perspectiva, tem-se, em 2009, a aprovação da Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, no qual, o projeto piloto denominado Programa Núcleo de Apoio à Família — NAF, em 2001, passa a ser denominado Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF). Tal mudança se relaciona com os dois eixos estruturantes da PNAS — a matricialidade familiar e a territorialização, instituindo a obrigatoriedade da oferta desse serviço no CRAS (MDS e SNAS, 2009/2014).
De acordo com o documento Orientações Técnicas sobre o PAIF (MDS e SNAS, 2012, pp. 9-10), o PAIF “foi concebido a partir do reconhecimento que as vulnerabilidades e riscos sociais, que atingem famílias, extrapolam a dimensão econômica, exigindo intervenções que trabalhem aspectos objetivos e subjetivos relacionados à função protetiva da família e ao direito à convivência familiar”. Dentro disso, o documento aponta que esse serviço,
Concretiza a presença e a responsabilidade do poder público e reafirma a perspectiva dos direitos sociais, constituindo-se em um dos principais serviços que compõem a rede de proteção social de assistência social, que vem se consolidando no país de modo descentralizado e universalizado, permitindo o enfrentamento da pobreza, da fome e da desigualdade, assim como, a redução de incidência de riscos e vulnerabilidades sociais que afetam famílias e seus membros. (p. 10)
Desse modo, o PAIF consiste no trabalho social com famílias, de caráter continuado, com a finalidade de fortalecer a função protetiva das famílias, prevenir a ruptura de seus vínculos, promover seu acesso e usufruto de direitos e contribuir na melhoria de sua qualidade de vida. Todos os serviços da proteção social básica, em especial os Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, bem como o Serviço de Proteção Social Básica no domicílio para pessoas com deficiência e idosos, devem ser referenciados e manter articulação com o PAIF (MDS e SNAS, 2009/2014).
Tal articulação se justifica pela busca em garantir o desenvolvimento do trabalho social com as famílias dos usuários desses serviços, permitindo identificar suas necessidades e potencialidades dentro da perspectiva familiar, propondo o rompimento com o atendimento segmentado e descontextualizado das situações de vulnerabilidade social vivenciadas. Desse modo, o documento aponta que o PAIF objetiva no contexto da Política de Assistência Social,
Fortalecer a função protetiva da família, contribuindo na melhoria da qualidade de vida; prevenir rupturas dos vínculos familiares e comunitários, possibilitando a superação de situações de fragilidade social vivenciadas; promover aquisições sociais e materiais às famílias, potencializando o protagonismo e a autonomia das famílias e comunidades; promover acessos a benefícios, programas de transferência de renda e serviços socioassistenciais, contribuindo para a inserção das famílias na rede de proteção social de assistência social; promover acesso aos demais serviços setoriais, contribuindo que para o usufruto de direitos; apoiar famílias que possuem, dentre seus membros, indivíduos que necessitam de cuidados, por meio da promoção de espaços coletivos de escuta e troca de vivências familiares. (MDS e SNAS, 2009/2014, p. 13)
Nesse sentido, o trabalho social essencial ao serviço caracteriza-se pela: acolhida, estudo social, visita domiciliar, orientação e encaminhamentos, grupos de famílias, acompanhamento familiar, atividades comunitárias, campanhas socioeducativas, informação, comunicação e defesa de direitos, promoção ao acesso à documentação pessoal, mobilização e fortalecimento de redes sociais de apoio, desenvolvimento do convívio familiar e comunitário, mobilização para a cidadania, conhecimento do território, cadastramento socioeconômico, elaboração de relatórios e/ou prontuários, notificação da ocorrência de situações de vulnerabilidade e risco social, busca ativa (MDS e SNAS, 2012, p. 61).
Portanto, a partir da oferta PAIF, desenvolvida no CRAS, espera-se em relação aos usuários: a segurança de acolhida, a segurança de convívio familiar e comunitário e a segurança de desenvolvimento da autonomia. Ou seja, o impacto social refere-se a,
Redução da ocorrência de situações de vulnerabilidade social no território de abrangência do CRAS; prevenção da ocorrência de riscos sociais, seu agravamento ou reincidência no território de abrangência do CRAS; aumento de acessos a serviços socioassistenciais e setoriais, melhoria da qualidade de vida das famílias residentes no território de abrangência do CRAS. (MDS e SNAS, 2009/2014, p. 15)
Interessante notar que no âmbito de tal política os termos proteção e atendimento integral parecem associar-se a dada/datada tecnologia de gerenciamento do risco social, na qual o vínculo familiar e comunitário é um dos operadores que conectam a Psicologia e a Política de Assistência Social. Dito de outra forma, ao situar o vínculo como objeto estratégico que estabelece conexões entre duas redes distintas de práticas, ou seja “— a rede que constitui a Psicologia e a rede da Assistência Social — permite aos profissionais da Psicologia um ponto de ancoragem no âmbito da proteção social” (Rodrigues e Guareschi, 2019, pp. 59-60).
Assim, tal operador relaciona-se com a produção de uma regulação, cuja estratégia de governo das populações se produz a partir do esforço para vincular pessoas entre si, suas famílias à comunidade e aos serviços de referência de rede de proteção social. Neste sentido, configura-se como instrumento que busca mobilizar sentimentos e comportamentos “adequados” entre os sujeitos (Rodrigues e Guareschi, 2019, p. 62).
Portanto, temos o que essas autoras chamam de relação entre o campo de conhecimento da Psicologia e o da Política Pública de Assistência Social como constituinte de uma prática social, em que se “coloca em evidência a discussão entre coprodução entre ciência e sociedade, já que a articulação dos saberes psicológicos, na construção da PNAS, também gera efeitos na produção dos modos de viver em sociedade” (Rodrigues e Guareschi, 2019, p. 60).
Segundo Sheila Jasanoff (2004), citada por Luciana Rodrigues e Neuza Guareschi (2019), períodos históricos dados e datados ou formações culturais e políticas particulares devem ser abordados a partir dessa coprodução. Pois, a partir disso, se reconhece que o modo como se conhece o mundo é inseparável das maneiras pelas quais escolhemos viver nele. Ou seja, o conhecimento e suas incorporações materiais são tanto produto do trabalho social como constitutivas de formas de vida social. Assim, ao pensarmos a coprodução entre ciência e sociedade, damos visibilidade para a produção de modos de vida e de sujeitos possíveis na articulação da produção de coletivos em que, ciência e sociedade, co-responsáveis pelas ações postas em curso na associação de diferentes estratégias, acabam por interagir na produção do vínculo no território de tal política.
Com isso, concordamos com Rodrigues e Guareschi (2019) quando afirmam que ao demarcar o vínculo como um objeto que ganha existência na Política de Assistência Social, a partir das conexões estabelecidas com o campo de conhecimento da Psicologia, pode-se situá-lo como um conector entre os respectivos campos. Conexões estas que se estabelecem da seguinte forma:
1) O fortalecimento dos referidos vínculos, como um compromisso da PNAS, é desenvolvido por ações cotidianas que incluem práticas desempenhadas pelos profissionais da Psicologia; 2) a criação de uma concepção de convivência e fortalecimento dos referidos vínculos dentro da própria política é produzida a partir de elementos heterogêneos de diferentes redes de conhecimento, entre os quais vários advêm do campo de conhecimento da Psicologia. (Rodrigues e Guareschi, 2019, p. 61)
A partir de tais proposições, os sujeitos são conduzidos a assumir determinadas condutas e, por sua vez, condutas mais legítimas, aceitáveis e desejáveis para a regulação da ordem social de um Estado. Nessa perspectiva, a proteção e o atendimento integral à família operacionalizado por meio do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), passa-se não só a conhecer, mas também a conduzir famílias.
Dez anos depois da publicação das Orientações Técnicas sobre o PAIF, volume I (MDS e SNAS, 2012), percebe-se que a família continua sendo, mais uma vez,
Alvo das máquinas sociais produtoras de subjetividade, pois, seria dentro de seu ambiente que deveria ser iniciada a prevenção contra os inimigos da pátria. Portanto, para os filhos desviantes e para a família desestruturada [com ou sem vínculos rompidos] um exército de especialistas do psiquismo foi (é, e será) convocado. (Bicalho, 2014, p. 39)
Nesse contexto, o PAIF passa, através dos meios de acesso, a operacionalizar o exame e regulação das famílias. Acolhida, escuta, estudo social, visita domiciliar, diagnóstico socioeconômico, monitoramento dos encaminhamentos realizados, referência e contrarreferência, elaboração de relatórios e prontuários, articulação da rede de serviços socioassistenciais, organização dos bancos de dados e informações sobre o serviço e sobre o Sistema de Garantia de Direitos, eis alguns dos mecanismos científicos da Assistência Social, da Psicologia, do Direito as quais buscam normatizar e naturalizar formas de ser e existir no mundo. Em nome da proteção social e do atendimento integral, ou como diz Pedro Paulo Gastalho de Bicalho (2014, p. 40) “em nome de seu amigo, o senhor o Cuidado” muitas vidas passam a ser reguladas.
Em um cenário de uma dada/datada governamentalidade neoliberal conservadora, em que percebe-se a reemergência de práticas de exclusão de alguns grupos, parece-nos que temos operando não só a regulação dessas muitas vidas, mas também a potencialização da produção do sentimento de insegurança discutido por Robert Castel (2003/2005), na medida em que a expectativa socialmente construída de redes proteções e das capacidades efetivas desta sociedade em praticá-las acaba por não ser garantida. Assim, ao pensarmos sobre o desinvestimento do Estado nas políticas públicas, e, em especial na Política Pública de Assistência Social, nos deparamos com o seguinte impasse: como produzir vínculos familiares e comunitários sem investimentos?
No âmbito deste trabalho, entende-se que, em tempos de neoliberalismo, biopoder e governamentalidade biopolítica, a população passa a ser instrumentalizada de acordo com os fins do Estado, a partir da lógica de mercado. Neste contexto, desnaturalizar determinados pressupostos — tais como a ideia de proteção e atendimento integral às famílias —, ao tempo de um diagnóstico do presente, permite o exercício de um posicionamento ético ante nossas próprias práticas, ou seja, uma reflexão comprometida que conjuga a responsabilidade crítica com o próprio fazer.
Nos últimos anos, observamos uma mudança de ênfase e tonalidade nas formas de gestão da população. Como vimos a partir de Lockmann (2020), há nesse período a transição de uma governamentalidade neoliberal democrática para uma que perde tal acento e assume uma faceta conservadora como fator mobilizante. Em meio a essas transformações, entendemos que a proteção e o atendimento integral à família foram capitalizadas pelo Estado sob diferentes ênfases: em um primeiro momento, segundo a lógica do mercado, pela via da inclusão; mais tarde, com o início do desmonte das políticas sociais, em sua faceta conservadora, a mesma lógica passa a operar com maior acento na exclusão, promovendo o desaparecimento social daqueles grupos sociais “que constituem a franja social que ameaça a coesão social não só pela sua quantidade, mas pela ausência de valor que agregam nas trocas sociais. Eles oscilam entre a possibilidade de exclusão, ou de inclusão” (Marques et al., 2019, p. 14).
Diante do cenário de desmonte das políticas sociais, interrogamo-nos como tem a Psicologia habitado o espaço da política e como pode reafirmar seu compromisso ético-político com a proteção social e, simultaneamente, resistir às práticas de normalização dos modos de vida de famílias e indivíduos. De que maneiras é necessário e possível reorientar a prática, e que forças necessitam ser mobilizadas para tal? É possível uma Psicologia que resista a uma política operada pela exclusão (e a um controle que assume contornos excludentes)?
Antes de buscar responder a essas questões, é necessário considerar o percurso de inserção da Psicologia no campo da Assistência Social, o qual se encontra em permanente construção, na medida em que busca saídas para a clássica tensão entre as práticas de teor clínico e orientadas ao indivíduo e aquelas que atendem às demandas coletivas. Entendemos que, com a crescente inserção dos psicólogos no SUAS, a Psicologia enfrenta um processo de ressignificação do seu exercício profissional, revendo sua relação com o tema da vulnerabilidade social e desconstruindo determinadas concepções estáveis e práticas cristalizadas, abrindo-se para a emergência do novo, da descoberta, do acontecimento (Cruz e Guareschi, 2009).
Pela análise realizada, é possível identificar duas tendências na prática psicológica no SUAS: práticas convencionais (aquelas que historicamente a Psicologia desenvolveu a partir da visão da clínica tradicional, centrada no plano individual, onde o indivíduo é visto como um sujeito a-histórico) ou práticas emergentes (as práticas que possibilitam uma atuação em consonância com os propósitos das políticas públicas, ao priorizarem práticas centradas em contextos e grupos, com ações de caráter preventivo, que valorizam uma pluralidade de abordagens, ou seja, uma ação inter e multidisciplinar) (Santos, 2016).
Em nome da proteção, do atendimento integral à família, não só crianças são interrogadas, mas, no contexto das Políticas Públicas de Assistência Social no Brasil, famílias e indivíduos são interrogados diariamente pelos serviços socioassistenciais sobre suas vidas, suas necessidades, seus vínculos, suas moradias, suas intimidades, seus riscos, suas vulnerabilidades, sua pobreza. Em nome de uma dada proteção e atendimento integral, são construídos discursos que legitimam determinadas práticas que buscam normalizar essa população. Tais discursos encontram sustento nas noções de risco e vulnerabilidade, que, ao serem incorporadas à política, produzem “em todo o corpo social a sensação de que risco e vulnerabilidade são fenômenos associados, servindo de munição para o controle e a gestão de grupos que alegadamente ameaçam a coesão social” (Marques et al., 2019, p. 10).
O histórico paradigma assistencialista, individualista, moralizante e de culpabilização da questão social, alavancado por parte dos(as) psicólogos(as) (e demais profissionais), por vezes, atendeu à manutenção de uma determinada ordem social. O processo de ressignificação das práticas profissionais passa pela necessidade de desconstruir alguns conceitos já cristalizados pela profissão. A desconstrução, nesse caso, não seria tomada como uma destruição dos conceitos e significações, mas como uma retomada circular que permita a emergência de novos pressupostos e perspectivas (Cruz e Guareschi, 2009).
Considerando a multiplicidade de formas pelas quais a vida humana se produz nesses espaços de efetivação de direitos sociais e que a relação dos usuários da assistência social com o(a) psicólogo(a) acontece, usualmente, através de situações que envolvem conflitos familiares, brigas de pais/mães/ responsáveis e filhos, “devolução dos filhos” à mãe ou aos pais biológicos, crianças que não possuem a referência maternal ou paternal, presença de alcoolismo e drogas no contexto familiar, desemprego e/ou emprego informal, além de outras inúmeras situações, faz-se a provocação: como operacionalizar ações no âmbito do PAIF que não se transformem em mais um veículo de controle da famílias?
Adriana Dourado e Andrea Scisleski (2019) destacam que este é um trabalho delicado de intervenção, pois:
Exige uma negociação com a norma, em resistir a ela, em levar os usuários do SUAS a pensarem juntos sobre como poderiam lidar com o mercado de trabalho, com a normas exigidas pelo próprio SUAS, sobre como prefeririam cuidar de seus próprios filhos, na qual o psicólogo pudesse abrir e levantar essas possibilidades. (p. 99)
Para levantar tais possibilidades, nos parece fundamental o reconhecimento das potencialidades das famílias, assim como, a ruptura de lógicas identitárias engessadas do beneficiário/usuário do SUAS. Como possibilitar tais aberturas no SUAS?
Uma pista para tal provocação, sem o intento de fechá-la, é lembrarmos de que há sempre possibilidades em jogo, assim, não só a Psicologia produz sujeitos, mas ao explorar como ela produz modos de nos relacionarmos e de sentirmos, pode-se abrir brechas em que tais famílias não estejam sempre ou apenas subjugadas à captura da lógica de uma política governamental.
Flávia Cristina Silveira Lemos et al. (2015, p. 462) destacam que a pesquisa documental “auxilia para a problematização de práticas sociais, da desnaturalização das mesmas e da ruptura com cristalizações”. Para os procedimentos de produção dos dados, utilizamos o documento público Orientações Técnicas sobre o PAIF, volume I (MDS e SNAS, 2012), disponível para download no formato PDF no site do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Este documento aponta algumas pistas sobre ações que se destinam atender as famílias em situação de pobreza, miséria e vulnerabilidade no âmbito da proteção social básica. Desse modo, podemos nos questionar se seria possível levantar certas provocações a partir da proteção e do atendimento integral às famílias em tempos de desmontes.
A intenção desta análise documental foi tomar as Orientações Técnicas como orientadoras de modos de governar a vida no presente, pois, os documentos tal como nos diz Foucault (1971/2004) são repletos de prescrições normalizadoras e de normativas legais. Uma vez selecionada a fonte de análise, procuramos entender como este documento, aliado aos efeitos gerados pelos recentes cortes orçamentários, nos permite levantar algumas provocações à Psicologia e ao SUAS, tendo em vista que esses campos se constroem imbricados à racionalidade neoliberal e aos processos de in/exclusão brasileiros. Para tanto, buscamos fazer o exercício que Foucault fez ao produzir conhecimento, ou seja, colocamos o conhecimento produzido em questionamento para, com isso, compreender como tomamos algo como verdade e como essa verdade produz modos de ser e existir no mundo. A partir da atitude crítica, problematizamos o processo de governo dos indivíduos e das populações, pois a atitude crítica permite aos sujeitos pensarem como se constituem como sujeitos, como se tornaram o que são. Para esse empreendimento, propomos o exercício da crítica para perguntarmo-nos sobre quais são os efeitos dessa produção na atualidade.
Assim, a partir da análise apresentada neste texto, realizamos algumas provocações à Psicologia a partir das práticas de proteção e do atendimento integral às famílias propostos pelo PAIF. A questão levantada, quais tensionamentos seriam possíveis ao fazer psicológico no âmbito do SUAS no que se refere à proteção e à atenção integral às famílias?, direcionou o olhar para práticas que se efetivam no âmbito do Sistema Único de Assistência Social, as quais atuam sobre a população na atualidade. Nesta perspectiva, ao tomarmos o PAIF como analisador de tal política, interrogamos como as práticas psicológicas poderiam preservar a integridade ao tempo de promover autonomia das famílias, uma vez que muitas ações no campo das políticas públicas configuram-se em dispositivos de controle sobre as famílias e os sujeitos.
No contexto da discussão deste texto, a partir dos tensionamentos em relação à gestão da pobreza, compreendemos que é preciso constituir espaços de resistência para encontrarmos brechas por onde seguir apostando no que ainda é possível construir, apesar dos desmontes. Dessa maneira, entendendo que se trata de um campo em movimento, concluímos que é preciso enfatizar que, no que se refere à governamentalidade neoliberal em sua faceta conservadora, cujo binômio in/exclusão (re)configura-se de modo a operar com o acento na exclusão, queremos demarcar a necessidade de estarmos atentos/as a seus efeitos políticos e sociais, assim como para o que o binômio in/exclusão institui e naturaliza na atualidade.
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LETÍCIA LORENZONI LASTA
Psicóloga, Mestre em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul e Doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
lelilasta@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-7447-3674
BETINA HILLESHEIM
Psicóloga, Doutora em Psicologia (PUCRS), Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e no Mestrado Profissional em Psicologia (UNISC).
betinahillesheim@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9486-5459
LETICIA HOLDERBAUN
Psicóloga e mestranda em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul (bolsista CAPES/PROSUC).
leticiaholderbaun@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-0697-4506
CAROLINE COUTO
Psicóloga, Mestre em Educação e doutoranda em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul (bolsista CAPES/PROSUC).
rosacouto.c@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-7102-0568
FORMATO DE CITACIÓN
Lasta, Letícia Lorenzoni; Hillesheim, Betina; Holderbaun, Leticia & Couto, Caroline (2023). A Psicologia no SUAS: Provocações em Tempos de Desmontes. Quaderns de Psicologia, 25(2), e1934. https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1934
HISTORIA EDITORIAL
Recibido: 20-04-2022
1ª revisión: 21-09-2022
Aceptado: 05-10-2022
Publicado: 30-07-2023