Quaderns de Psicologia | 2023, Vol. 25, Nro. 1, e1778 | ISNN: 0211-3481 |
https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1778
Marina Souza Lobo Guzzo
Universidade Federal de São Paulo
Marina Guzzo é artista e professora Associada da Unifesp no Campus Baixada Santista, pesquisadora do Laboratório Corpo e Arte no Instituto Saúde e Sociedade. Tem pós-doutorado pelo Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP e é mestra e doutora em Psicologia Social pela PUC-SP.
Resumo
Este artigo pretende cartografar e articular duas práticas em torno do corpo e do cuidado na área da saúde: o autocuidado e a hapticalidade. Essas duas práticas e perspectivas entrelaçam-se na frase emblemática atribuída à feminista Emma Goldman “se não posso dançar, não é minha revolução”. A partir das perspectivas dos gestos menores de Erin Manning, a dança é apresentada como encontro que possibilita e estimula esses conhecimentos pouco abordados nas formações da área da saúde. Alegria, poesia e conhecimento do próprio corpo e do corpo do outro, assim como atenção, respiração e sustentação são eixos para escutar e atuar no mundo. Uma dança menor, que entende o corpo como processo de invenção, criação e espaço de experiência. Esse exercício de escrita se propõe a aproximar cuidado e luta, numa possibilidade de transformação, revolução e ética na área da saúde.
Palavras-chave: Autocuidado; Hapticalidade; Corpo; Política
Abstract
This article aims to map and articulate two practices around the body and health care: self-care and hapticality. These two practices and perspectives are intertwined in the emblematic phrase attributed to feminist Emma Goldman “if I can't dance, it's not my revolution”. From the perspective of Erin Manning’s minor gestures, dance is presented as a meeting that enables and stimulates this knowledge that is rarely addressed in health education. Joy, poetry and knowledge of one’s own body and the body of the other, as well as attention, breathing and support are axes for listening and acting in the world. A smaller dance, which understands the body as a process of invention, creation and space of experience. This writing exercise aims to bring care and struggle together, in a possibility of transformation, revolution and ethics in the health area.
Keywords: Self-care; Hapticality; Body; Politics
Aprender a lutar contra esse desespero em todas as suas manifestações não é apenas terapêutico. É vital. Sublinhar o que é alegre e afirmativo na minha vida torna-se crucial. (Lorde, 2017, p. 231, tradução minha)
Este artigo pretende cartografar e articular duas práticas em torno do corpo e do cuidado na área da saúde: o autocuidado (Lorde, 2017) e a hapticalidade (Moten e Harney, 2013). Essas duas práticas e perspectivas entrelaçam-se na frase emblemática atribuída à feminista Emma Goldman “se não posso dançar, não é minha revolução”. O texto apresenta os dois conceitos discutidos por seus autores e colaboradores, e termina com propostas práticas de pensar a dança como espaço de encontro para essa reflexão e formação.
A formação em saúde, em suas diferentes áreas, opera com conceitos e aprendizagens que se colocam, quase sempre, a partir de uma perspectiva que privilegia uma determinada maneira de fazer/ensinar/pensar o cuidado — com discursos de representações dominantes e normativas. Há uma lacuna de olhares múltiplos, na formação de profissionais de saúde e nas pesquisas desenvolvidas por projetos que envolvem estudantes e comunidades. Essa lacuna já foi debatida amplamente e publicada por outros autores como na área da psicologia, por Jacqueline. Meireles et al. (2019) e o próprio Conselho Federal de Psicologia (2017)
Historicamente, a Psicologia brasileira posicionou-se como cúmplice do racismo, tendo produzido conhecimento que o legitimasse, validando cientificamente estereótipos infundados por meio de teorias eurocêntricas discriminatórias, inclusive por tomar por padrão uma realidade que não contempla a diversidade brasileira. (Conselho Federal de Psicologia, 2017, p. 75)
O feminismo negro produziu e produz uma série de discussões sobre cuidado, luta e transformação social, que propõe a inclusão de tecnologias de cuidado, afeto e saberes comuns que precisam ser divulgados amplamente. Como sugere Chandra Mohanty (como citado em hooks, 2020), num ensaio sobre raça, voz e liberdade na Educação:
Descobrir conhecimentos subjugados e tomar posse deles é um dos meios pelos quais histórias alternativas podem ser resgatadas. Mas, para transformar radicalmente as instituições educacionais, esses conhecimentos têm de ser compreendidos e definidos pedagogicamente não só como questão acadêmica, mas como questão de estratégia e prática. (Mohanty, 1990, como citado em hooks, 2020, p. 36)
Há necessidade de forjar gestos menores para essa área — não só no momento da pandemia, mas principalmente agora — com foco na potência dos pequenos movimentos que funcionam como redes de resistência e modos possíveis de agir coletivamente frente aos processos de adoecimento, exclusão, racismo e domesticação. Modos de cuidar que acontecem não somente no momento da prática do cuidado em si, mas em toda prática relacional que se dá para que os corpos possam estar presentes, atentos ao que lhes acontece também em outros momentos. Pensar o cuidado, o amor, o toque e movimentos a partir da prática operada por estas perspectivas, não só amplia o olhar para a vida e para o corpo, mas também contrapõe-se às políticas e biopoderes hegemônicos contemporâneos, impostos ao sistema de saúde e à atenção ao corpo e à subjetividade.
Autocuidado (Lorde, 2017) e hapticalidade (Moten e Harney, 2013) constituem-se como gestos menores, aqui pensados a partir do referencial proposto pelo pensamento de Erin Manning em seu livro The Minor Gesture (2016). A autora propõe a seguinte definição para “o gesto menor: a força gestual que abre a experiência para sua potência de variação” (Manning, 2019, p. 12). Essa potência do gesto menor, de poder cuidar de si, e também poder ser solidário ao movimento do outro, de partir da pele, do toque e do amor como caminho para práticas de cuidado, acontece de dentro da experiência, ativando diferenças, outras formas de tonicidade e tonalidade. E essa variação da experiência, o gesto menor, estaria sempre entrelaçado com tons maiores — não precisar estar fora do que vivemos e praticamos como saúde e cuidado.
A etimologia de palavra cuidado vem do latim cogitatus, que significa meditado, pensado e refletido. Em português, significa: atenção especial, inquietação, preocupação, zelo, desvelo que se dedica a alguém ou algo, objeto ou pessoa desse desvelo, encargo, incumbência, responsabilidade, lida, trabalho, ocupação (Houaiss, 2009). Cuidar é sempre relação: posso cuidar de uma criança, de uma planta, de uma casa, de um planeta. A noção de cuidado, no entanto, tem-se transformado e identificado com ações de profissionais que atuam na área da saúde (Contatore et al., 2017).
Octávio Augusto Contatore et al. (2017) afirmam que embora o cuidado seja necessário para algo/alguém viva ou sobreviva (inclusive em termos planetários), não aprendemos a cuidar de maneira sistematizada. O cuidado ficou a cargo da família e por consequência corroborou para a construção dos modelos do que se entende por mulheres. “Como resultado, os cuidados e a sua importância para a vida social foram subvalorizados pelas ciências humanas e reduzidos pelas ciências naturais” (Contatore et al., 2017, p. 554). Com isso, três questões importantes se abrem: 1- fica à cargo das mulheres a maioria das ações e formas de cuidado, principalmente, cuidados referentes a outros seres humanos, como crianças, idosos e enfermos. 2- essas mulheres, que cuidam, acabam não tendo elas mesmas um espaço de cuidado, uma vez que são sobrecarregadas com essa “obrigação” social e laboral. 3 - A formação e produção de conhecimento nas áreas da saúde, entendem “cuidado”, como algo menos importante dentro da formação, tendo como foco e privilégio questões técnicas e objetivas, advindas das respostas biológicas e fisiológicas do corpo, deixando uma lacuna na formação de profissionais de saúde. Práticas e conceitos mais afetivos, amorosos e solidários — não só para quem será cuidado, mas para os próprios profissionais, que acabam não se observando, não se escutando e não se cuidando. Uma espécie de cisão entre o saber, fazer e sentir. E por isso, a importância do gesto do autocuidado.
Entre as tantas contribuições que o pensamento interseccional de Audre Lorde nos permite, seu questionamento sobre a cisão entre o saber e o sentir se faz fundamental quando pensamos a formação em saúde. A poesia, assim como a teoria nos ajudam a entender e criar formas de ser e agir no mundo.
Os patriarcas brancos nos disseram: “Penso, logo existo”. A mãe negra dentro de cada uma de nós — a poeta — sussurra em nossos sonhos: “Sinto, logo posso ser livre”. A poesia cria a linguagem para expressar e registrar essa demanda revolucionária, a implementação da liberdade. (Lorde, 2020, p. 48)
O conceito de autocuidado proposto por Lorde surgiu no epílogo do livro A Burst of light, de 1988: “Crucial. Fisicamente. Psiquicamente. Cuidar de mim não é auto indulgência, é autopreservação, e isso é um ato de guerra política” (Lorde, 2017, p. 229, tradução minha).
A escrita íntima encarnada por Lorde (2017) relata a experiência da autora em relação aos profissionais de saúde, às instituições bem como às formas de cuidado e escolhas feitas frente à uma doença terminal. Como viver e cuidar de si quando se está em constante ataque? Quem cuida de quem cuida? A partir disso, Audre Lorde parece frisar a conexão entre autocuidado e política nos fazendo pensar que as práticas de proteção de si fazem parte das práticas de luta. A saúde física e emocional ganha destaque na sustentação do seu fazer frente ao sofrimento que encontramos durante nosso percurso de cuidar dos outros, especialmente frente a realidades devastadas pelas políticas de vulnerabilzação e violência.
O autocuidado também foi um dos eixos da pesquisa de Jane Barry e Jelena Djordjevic (2007) publicada no livro Que sentido tem a revolução se não podemos dançar? Segundo o conceito de autocuidado, as pesquisadoras conversaram com mais de 100 mulheres ativistas, cuidadoras e militantes sobre como faziam para cuidar de si mesmas. Os resultados evidenciaram que a maioria das entrevistadas, trabalhadoras de práticas de cuidado e ativismo, não cuidam de si e sofrem de alguma maneira (física e emocional). Questões como prazer, espiritualidade, relação com o próprio corpo, sexualidade e a possibilidade de descanso são abordadas na pesquisa, que revela a importância de um esforço constante em se manter ativa e forte o desempenho dessas. As ações de cuidados e ativismo levam grande parte das mulheres que participaram da pesquisa a situações de burnout e adoecimento (Barry e Djordjevic, 2007). Essa é uma Importante informação para aqueles que vão cuidar de quem cuida — ou para aqueles que vão trabalhar na área da saúde, e precisam também olhar para si.
Ao lidar com alunos que vão se tornar profissionais de saúde, percebo que grande número experimenta sofrimento durante a formação (independente da área de atuação na saúde). Não somente o sofrimento de se deparar com a dor do outro (algumas incuráveis) e com o sistema de exclusão em que vivemos, sobretudo na realidade brasileira, mas também o sofrimento pela falta de tempo para si. Essa falta é refletida em um cansaço e desinteresse constante, pelo conteúdo, pelo próprio processo de formação e pelo “outro” que precisa de seu olhar atento. Isso é uma consequência de uma saúde pensada a partir do processo de colonização: algo que está fora e distante de nós, que precisa ser “conquistado” e não algo que já temos e precisamos cuidar e preservar.
O conceito de autocuidado tem sido cooptado como um discurso do individualismo presente no sistema neoliberal — afinal, muitos dos “influencers” da saúde na internet falam sobre isso o tempo todo, com suporte de produtos, práticas e realidades inacessíveis para a maioria da população brasileira. No entanto, para o movimento feminista, trata-se de uma organização que começa pelo próprio corpo, uma estratégia ou tática de sobrevivências, para aqueles que “nunca foram destinados a sobreviver” (Lorde, 2020, p.14).
Mas cuidar da minha própria saúde, obter informações suficientes para me ajudar a entender e participar das decisões tomadas sobre meu corpo por pessoas que sabem mais medicina do que eu, são estratégias cruciais na minha batalha pela vida. Eles também me fornecem protótipos importantes para travar batalhas em todas as outras arenas da minha vida.
A luta contra o racismo, a luta contra o heterossexismo e a luta contra o apartheid compartilham a mesma urgência dentro de mim que lutar contra o câncer. Nenhuma dessas lutas é fácil, e mesmo a menor vitória nunca deve ser considerada garantida. Cada vitória deve ser aplaudida, porque é tão fácil não batalhar, apenas aceitar e chamar essa aceitação de inevitável.
E todo poder é relativo. Reconhecer a existência, bem como as limitações de meu próprio poder, e aceitar a responsabilidade de usá-lo em meu próprio benefício, envolve-me em ações diretas e diárias que impedem a negação como um possível refúgio. As palavras de Simone de Beauvoir ecoam em minha cabeça: “É no reconhecimento das condições genuínas de nossas vidas que ganhamos força para agir e nossa motivação para a mudança.” (Lorde, 2017, p. 203)
Outras experiências feministas também falam sobre a importância de cuidado e autocuidado para ativistas. Na publicação Cuidado entre ativistas tecendo redes para a resistência feminista, Guacira Oliveira e Jelena Dordevic (2015) propõe o cuidado e o autocuidado como um tipo de intervenção política para lidar com situações difíceis no cotidiano de quem trabalha com a tarefa de cuidar, transformar as formas de acolhimento. O autocuidado e o cuidado são vistos como um “caminho para interpelar o individualismo, o sexismo, o racismo e outras formas de discriminação que interiorizamos e que continuam nos oprimindo dia após dia” (Oliveira e Dordevic, 2015, p. 17).
Não há consenso sobre o que é autocuidado, as experiências são muito variadas, assim como as metodologias para trabalhar o autocuidado. Temos que verificar o que funciona para o grupo/coletivo/contexto que trabalhamos e implementar isso deliberadamente, como parte das nossas práticas de organização diária (Oliveira e Dordevic, 2015).
José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres (2004) quase se aproxima dessa discussão, quando apresenta que o sentido de cuidado já consagrado pelo seu uso, refere-se a um conjunto de procedimentos que tecnicamente refletem o êxito de um tratamento. É necessário ampliar uma compreensão de cuidado como prática de responsabilidade, acolhimento e atitude frente aos processos sociais e individuais, incluindo aí perspectivas não-humanas também. Nesse sentido, o autocuidado — assim como é o cuidado, deve ser pensado como conhecimento tácito, ou seja, que acontece como processo de socialização, de uma prática pessoal coletivamente construída, fruto de experiência, convivência e transmissão complexa, ensinadas em instituições de ensino desde muito cedo, principalmente, por mulheres em situações subalternas. Isso já acontece e muitas vezes é chamado pelo feminismo negro de reconhecimento e atenção à ancestralidade.
Quando entramos em contato com nossa ancestralidade, com a consciência não européia de vida como situação a ser experimentada e com a qual se interage, aprendemos cada vez mais a apreciar nossos sentimentos e a respeitar essas fontes ocultas do nosso poder — é delas que surge o verdadeiro conhecimento e, com ela as atitudes duradouras (Lorde, 2020, p. 46)
Importante incluir a consciência de que essas mulheres, com essa ancestralidade, dizem respeito a todos nós. Enquanto o processo de exploração e violência do corpo de mulheres negras continua no Antropoceno — ou Capitaloceno, ou Plantationoceno ou Chthuluceno como diria Haraway (2016) — nós sofreremos o impacto também nos nossos corpos brancos e privilegiados: no planeta, tudo está conectado. A crise climática é também uma crise de cuidado, de autocuidado: um sentido que extrapola nosso corpo individual e humano e atinge outros seres e o próprio corpo planetário.
Nesse sentido, torna-se importante ampliar a concepção de saúde e cuidado e pensá-la a partir da perspectiva do Bem Viver (Chuji et al., 2021). Pensar o cuidado nessa perspectiva é questionar radicalmente alguns dos componentes centrais da modernidade, a partir de mudanças profundas na maneira como conhecemos, nos relacionamos e nos afetamos. O Bem Viver parte de uma ontologia plural e assume expressões específicas em diferentes lugares e regiões sobre o que é ser saudável e ser feliz — não baseados na centralidade dos seres humanos como únicos sujeitos dotados de necessidades de cuidado e representação. Um cuidado anti-colonial, que passa por uma ideia de comunidades ampliadas, formadas por humanos e não humanos, que conferem “importância substancial à afetividade e à espiritualidade” (Chuji et al., 2021, p. 211).
Ashley Montagu (1986) em seu livro Tocar, o significado humano da pele, descreve a pele como o primeiro e principal órgão de comunicação humana, sendo uma porção exposta do sistema nervoso — lugar fundamental para todo o desenvolvimento do que entendemos como afeto. A pele é, portanto, o primeiro lugar que sentimos o cuidado —. É também na pele que muitas pessoas experimentam os primeiros sentidos da violência e do que significa ser “subalterno” se pensarmos como exemplo a construção das estruturas racistas e patriarcais. Pensar a pele, o toque e as consequências que isso tem para a transformação política é fundamental. A pele carrega um sentido muito mais amplo que o tato e o toque. Ela atua como uma espécie de “sensor” da experiência que produz o pensamento/sensação de ser e estar no mundo. Para além da pressão, dor, calor, prazer, movimentos, temperatura, fricção, e muitos outros sentidos, a pele nos proporciona o sentido háptico. Háptico vem do termo termo grego haptikos, que significa o que é relativo ao tato.
O termo háptico é usado para descrever o sentido do tato em sua extensão mental, desencadeada diante da experiência total de se viver e agir no espaço. (...) o sentido háptico é adquirido pois se aplica a objetos vistos que tenham sido tocados ou usados em manipulações. (Montagu, 1986, p. 33)
É o sistema háptico que nos mantém em contato, que conecta o corpo e o pensamento em uma única experiência. O que experimentamos e vivemos na pele é também reflexo da maneira como agimos e atuamos no mundo. A pele é, portanto, sempre reflexo. Fred Moten e Stefano Harney (2013) no livro The Undercommons também dedicam um capítulo para pensar o que seria “hapticalidade” e o amor, como caminho da construção de um bem comum.
Largados juntos tocando um ao outro, nos foi negado todo sentimento, negado todas as coisas que deveriam produzir sentimento, família, nação, idioma, religião, lugar, lar. Embora forçados a tocar e sermos tocados, a sentir e sermos sentidos naquele espaço, embora negado o sentimento de história e de lar, nós sentimos um (pelo) outro. (Moten e Harney, 2013, p. 98)
Os autores falam da hapticalidade como essa capacidade de sentir pelo outro. É por meio da pele, do toque e do amor que se constrói algo comum. Esse toque comum faz frente a maneira que tradicionalmente os bens foram teorizados como um conjunto de recursos e relações que são criados, protegidos e gerenciados coletivamente. O que Moten e Harney (2013) apontam é que esse conjunto de relações e recursos é apresentado como um estado alcançado por indivíduos que decidem entrar em relações por meio do poder, e os bens comuns, acabam sendo entendidos como estados e nações (Moten e Harney, 2019). Como forma de transformar essa lógica, a hapticalidade é proposta como prática afirmativa, com o que está por baixo dos processos de individuação, o que não precisa um momento de regulação, correção, liquidação. Porque os undercommons já estão. “Já estamos aqui, nos movendo. Nós estivemos por aí. Somos mais do que política, mais do que estabelecidos, mais do que democráticos” (Moten e Harney, 2013, p. 19). Uma solidariedade comum: “uma forma de sentir através dos outros, uma sensação de sentir os outros sentindo você” (Moten e Harney, 2013, p. 98). Um sentimento que não pode ser sentido individualmente, mas nem coletivamente como um sentimento homogêneo. É uma sensação que não pode ser fixada em um território, estado, nação, história — ou instituições. É uma espécie de “fechamento” pelo toque, pela pele, do que podemos sentir, construir e fazer juntos.
Durante a pandemia de COVID-19, que vivemos desde o início de 2020, tocar e estar em contato foi proibido, mesmo que o aparente sentimento de solidariedade entre as pessoas tenha crescido como demanda social. A importância do toque, do cuidado e da presença do profissional da saúde se fez crucial para sobrevivermos a uma tragédia social e planetária, com maior impacto para populações vulnerabilizadas pelo sistema econômico de exclusão. Se, por um lado, vivemos uma guerra de discursos médicos e de formas de cuidar para não propagar o vírus com vigilância e violência, por outro, pudemos observar a potência de gestos menores e de ajuda mútua, cuidado comum que (já) sustentava a vida social. Assim, até certo ponto, a excepcionalidade poderia ajudar a multiplicar a hapticalidade, a tocar a solidariedade já comum, a espalhar a sensação de sentimento por outros, a fugir enquanto cercava os recintos cotidianos, a inventar novos dispositivos de cuidado mútuo. A força da solidariedade comum que poderia, ao mesmo tempo, antagonizar os comandos capitalistas sobre a vida, fundamenta o poder e o toque desse subconsciente sentir e viver. Outras formas de movimento, sentido e cuidado. Um cuidado que esteja engajado nas maneiras de transformação da vida, da política, do encontro.
Para Erin Manning (2015), a maneira como nos movemos é sempre política. Então, o toque, também pode ser pensado como uma forma de pensar este corpo em movimento. E isso não é estabelecer uma hierarquia ao toque, mas entendê-lo como operação cinestésica fundamental para os vetores de relação, sempre em diálogo com outros sentidos — todos e muito mais que os cinco tradicionais, definidos fisiologicamente.
Pensar o toque cinestesicamente é apreciar todas as maneiras pelas quais o movimento altera qualitativamente um corpo, como se torna aparente ao final da política do tato, os sentidos alteram as dimensões do corpo. Incitando o corpo a se mover além de si mesmo, em direção ao mundo. Sentir em direção ao mundo implica o corpo em um turbilhão que reorganiza as concepções de espaço e tempo. O corpo em ação na política do toque é um corpo sensível em movimento. Este não é um novo corpo, e sim um corpo que sempre emergiu através e ao lado de outros corpos — como os undercommons (Moten e Hardney, 2013). O que há de novo sobre o corpo por estar alicerçado na política do tato, não é a forma ou a formato, mas as matrizes relacionais que ele possibilita.
A hapticalidade é definida por Moten e Hardney (2013) como “um sentimento de sentir os outros sentindo você” (p. 98). A hapticalidade assim proposta preenche o vazio do tácito, do que é silencioso. Coloca-nos abertos para a vida e para o mundo. Podemos a partir dessa prática perceber não só os outros humanos mas também não humanos. Seres, objetos, naturezas. Ouvir o barulho do rio, conhecer o movimento da maré, olhar o céu e se conectar com o vento nas folhas das árvores. Hapticalidade está no lugar do que não pode ser dito. Mas sentido junto. E não se trata de integração, a zona da hapticalidade é uma zona de diferenças, um caminho de encontro de campos de práticas (Ingold, 2019).
Com efeito, a hapticidade preenche o vazio do tácito. Onde o tácito é silencioso, o háptico é ruidoso; onde o tácito é corporificado, o háptico é animado; onde o tácito está imerso nas profundezas do ser, o háptico está aberto e vivo para os outros e para o mundo. Isso também não precisa ser limitado à esfera das relações humanas. Outros tipos de seres, ou outros fenômenos, fazem sua presença ser sentida de várias maneiras, e devemos atendê-los também. (Ingold, 2019, p. 9)
Rizvana Bradley (2014) organizou um volume da revista Women & Performance: a journal of feminist theory (Bradley, 2014), com vários artigos que provocados pelo conceito de hapticalidade de Moten e Hardney (2013), que ampliaram a noção do háptico como objeto de investigação. O dossiê apresentado por Bradley (2014), reuniu ensaios sobre economias táteis emergentes e abordou o sistema háptico como um conjunto específico de negociações materiais entre corpos, espaços e objetos. O toque, a dobra, o dedilhado, a pele em relação com a textura de um objeto, se oferecem como técnicas de conhecimento em arte e performance. Mas podemos pensar que também é importante saber-fazer da área da saúde. A partir da hapticalidade, podemos expandir os parâmetros de encontros e presenças, não apenas em diversos contextos artísticos e educacionais, mas mais especificamente, nas bordas cruciais da prática social e de contextos de cuidado e transformação política.
Arrisco uma aproximação entre o conceito de hapticalidade (Moten e Hardney, 2013) com o conceito de “aquilombar-se” proposto por Antonio Bispo dos Santos, ou Nêgo Bispo (2015). Aquilombar-se contra a destruição decorrente da colonização, gera um movimento que o autor, chama de contra-colonização. São saberes, que assim como em Underccomons (Moten e Harney, 2013), surgem como processos de resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contra-colonizadores, com seus símbolos, as significações e os modos de vida.
Em sua trajetória nessa luta, Nêgo Bispo espalha com sua obra e pensamento, uma chance de um “devir quilombola”, quando sugere que a gente se “aquilombe”, para entender a terra e o território no sentido de universos existenciais vinculados, não somente à produção econômica, mas aos corpos e aos espíritos desses povos, para poder cuidar e proteger os territórios físicos e simbólicos que estão em jogo nessa guerra de mundos (Bispo, 2015). Aquilombar é criar refúgio, com tecnologias potentes e ancestrais. Um cuidado também háptico, um saber que passa pela pele.
A hapticalidade nesse sentido não pode ser “ensinada”, mas existem muitas formas de fazer a conexão e a ativação desses “receptores” hápticos a partir de exercícios de dança, educação somática e jogos de presença. É um saber que transforma o encontro: quando te toco, ou quando você me toca, podemos nos conhecer a partir de outro lugar.
E nesse sentido, o toque é sempre político — podendo ser algo que abre uma imensa possibilidades de sentidos e potências como também inúmeras formas de violências e imposições normativas (Manning, 2007).
A dança do autocuidado e da hapticalidade é uma dança como “processualidade” de aproximação entre o corpo, o espaço, o gesto e o desejo de movimento. Dentro da processualidade pensamos a forma, a posição do corpo, o jeito de se mover, de respirar, de pausar. Essa forma, que não é estática, tem relação de correspondência com o fora e não se explica em si mesma. Escutar, sentir, tocar, perceber são ações necessárias.
Uma dança menor, aqui pensada junto com o autocuidado e a haptcalidade, seria então a proposição de um campo de processo de atenção para o corpo, numa dança que amplia o olhar para a vida e suas paisagens. A dança menor não é pequena. É aquela que articula possibilidades de novas coreografias, com novos posicionamentos de corpos e instituições. Dança menor (Guzzo e Alves, 2021), pensada como a produção material e imaterial, subjetiva e afetiva, que significa que a vida e os corpos não podem ser reduzidos a processos biológicos e econômicos já estabilizados. A dança menor pode ser pensada em danças que sugerem e geram novas ativações de presenças e corpos (não necessariamente minorias). A dança menor, pode ser pensada como ativadora, portadora de um agenciamento que desenha o acontecimento que acontece no corpo, mas também fora dele, movendo-se em novos modos de existência (Manning, 2019).
Importante delimitar a complexidade e heterogeneidade dos possíveis entendimentos e práticas de dança. Por isso, este artigo pretende delinear uma linha de força para o trabalho com movimento, não delimitando uma “técnica” de dança específica, mas ampliando o olhar para o que pode acontecer em uma proposta interdisciplinar que abraça a expressividade, sensualidade e invenção de corpo como ponto de partida para profissionais da área da saúde.
A proposição de construir uma dança em comum com a área da saúde, pensada como experiência estética e somática — um outro saber sobre o corpo — pode ser um modo de percorrer e investigar as noções de presença, cuidado, comum e política.
Erin Manning (2016) destaca que está no “gesto menor”, um campo estético e político orientado na noção de processualidade como estratégia a novas formas de pensamento e produção em arte, como também, a convocação de insurgências coletivas no contexto atual. “É enfatizar que arte é, acima de tudo, uma qualidade, uma diferença, um processo operativo que mapeia caminhos rumo a uma certa afinação entre mundo e expressão” (Manning, 2019, p.12).
A autora propõe uma definição, “o gesto menor: a força gestual que abre a experiência para sua potência de variação” (Manning, 2019, p. 12). Essa potência do gesto menor, acontece de dentro da experiência, ativando diferenças, outras formas de tonicidade e tonalidade. Essa variação da experiência, o gesto menor, estaria sempre entrelaçado com tons maiores. A autora ainda nos expõe a contraposição da arte como produção exclusiva de objetos e objetivos como fim: essas definições priorizam o objeto produzido pela arte e o que ele suscita de um modo passivo-ativo, onde separa quem observa e quem realiza a arte (Manning, 2016). O pensamento contraposto é de uma arte entendida como maneira e modo de se fazer, considerando o processo como a arte em movimento (a atividade). Entendendo o lugar de possível atividade de cada sujeito de um acontecimento, fazer arte é então realizar processos que acoplam um campo prático e simbólico simultâneo evidenciando os corpos presentes como agentes.
Para pensar a dança que se preocupa em produzir um objeto (coreográfico) há de se considerar que para essa produção também exige-se passar por um processo, a autora (Manning, 2016) nos traz elementos para pensarmos a qualidade e finalidade de tais processos. Ou seja, uma definição de arte como “processualidade”. Dentro da processualidade pensamos a forma, essa forma que não é estática, tem relação de correspondência com o fora e não se explica em si mesma.
Uma dança menor, pensada aqui, seria então, a proposição de um campo de processo em dança (em suas multiplicidades e possibilidades heterogêneas), que evidencia as passagens necessárias para o encontro, entre as pessoas e as proposições coreográficas, com foco na potência dos pequenos movimentos que funcionam como redes de resistência e modos possíveis de agir e criar coletivamente — modos de criar ou coreografar potências de variação, que acontecem não somente no momento da prática coreográfica, mas em toda prática relacional que se dá para que os corpos possam estar presentes e dançar.
E que dança? Uma dança que amplia o olhar para a vida e para o corpo e que se contrapõe às políticas e biopoderes hegemônicos contemporâneos, também impostos aos artistas e suas produções coreográficas. Uma dança que amplia a noção de corpo, para um corpo coletivo a partir de forças e gestos de encontro.
Uma dança proposta para articular possibilidades de novas coreografias, com novos posicionamentos de corpos e instituições, considerando também os momentos em que arte e não-arte se provocam e contaminam, colocando em questão a própria existência de uma separação entre as práticas artísticas e a vida cotidiana.
A dança menor pode ser pensada como novas ativações de presenças e corpos, que se reconheçam mesmo dentro de um dissenso como experiências comuns. O movimento coreográfico, ou a pausa (que também é igualmente importante para a coreografia), pode ser pensada como ativadora, portadora de um agenciamento que desenha o acontecimento, que acontece no corpo, mas também fora dele, movendo-se em novos modos de existência (Manning, 2019).
Através do processo artístico concebemos a dança como prática estética porque promove a condução e sustentação de uma experimentação afetiva e perceptiva de si e do mundo, a partir do corpo. Esse corpo, que dança, que observa outros corpos que dançam, que partilha e organiza referências múltiplas de ser e modos de fazer dança, adentra uma série de processos de regeneração de si e do mundo, a partir da estética.
Essa dança pode ser estudada, praticada e proposta em situações de ensino aprendizagem, em situações de cuidado, na formação em saúde — em suas diversas áreas de atuação interdisciplinar. E estudar e (des)aprender juntos (mesmo que separados no contexto pandêmico) é uma das formas como Moten e Harney (2013) propõem o lugar e o comprometimento da universidade — um espaço de especulação, que aproxima-se também da criação da dança (e também da música, do teatro), como um espaço de ensaio:
Estamos comprometidos com a ideia de que estudar é o que você faz com outras pessoas. É conversar e caminhar com outras pessoas, trabalhando, dançando, sofrendo, alguma convergência irredutível dos três, realizada sob o nome de prática especulativa. A noção de um ensaio — estar em uma espécie de oficina, tocar em uma banda, em uma jam session, ou velhos sentados em uma varanda ou pessoas trabalhando juntas em uma fábrica — existem esses vários modos de atividade. O objetivo de chamá-lo de “estudo” é marcar que a intelectualidade incessante e irreversível dessas atividades já está presente. (Moten e Harney, 2013, p. 110)
Essa sala de ensaio, pode ser qualquer lugar. Pode ser um equipamento de cultura, de saúde ou de educação. Pode ser uma sala de aula, ou pode ser uma sala do Google Meet/ Zoom. O encontro especulativo que inspira estar junto e sentir junto, é uma forma de construir essa presença firme e precisa, diante de situações de sofrimento, que implicam cuidado.
Um exemplo que fundamenta esse referencial é Steve Paxton1 e o que ele nomeia de “pequena dança” (Paxton, 1997). Essa pequena dança, consiste em ficar de pé e em seguida relaxar, e observar seu corpo a realizar todos os processos necessários para se estabelecer e se sustentar nessa posição.
Então, em um certo momento, você percebe que relaxou tudo o que pôde relaxar, mas você ainda está de pé, e que este estar de pé é uma sequência de muitos instantes de movimento. O esqueleto te segura na vertical apesar de mentalmente você estar relaxando. Agora, o próprio fato de você estar ordenando a você mesmo a relaxar, e ainda continuar de pé — encontrando este limite no qual você pode relaxar ao máximo sem cair, coloca você em contato com um esforço básico de sustentação que está constantemente no corpo, mas do qual você não tem consciência o tempo todo” (Paxton, 1997, p. 23).
Nesse exercício simples de percepção e compreensão, fica evidente que, para nos mover, precisamos também perceber que muitos movimentos já acontecem, e que mesmo, pequenos — ou invisíveis — são responsáveis para que a dança aconteça. A partir de uma proposta de conscientização, Steve Paxton apresenta uma forma de dança como processo constante de atenção, presença e escuta, mas também a possibilidade de entender a dança como uma experiência singular, que nos permite partilhar o encontro com outros corpos, objetos e presenças.
É importante trazer um referencial de corpo, que se afina nessa relação entre os corpos-mundo e as expressões desses mundos, buscando acender potências e inaugurar afetos que podem ser amparo para os agenciamentos possíveis aos pequenos gestos e danças envolvidas neste processo de partilha. O corpo aqui é também pensado como processo. A processualidade é este corpo cuja forma é mutável e tem suas expressões em gestos, tem um jeito de operar, o jeito (manner) aciona diferentes sensações do tempo e do espaço. A partir da diferença da sensação do tempo — do que era e do que é —, uma outra coisa é acionada, essa coisa outra aquém do cotidiano, mas que reside ali no que pode vir a ser é a experimentação da “arte do tempo” (Manning, 2016).
A arte do tempo é impulsionada pela intuição que agencia essa experimentação de atualização do sujeito. A atualização se dá à medida que o corpo se percebe em vibrações que se sintonizam com os tempos em diferenciação. Quando a dança convoca perceber como se senta, onde está a coluna no espaço, observar a respiração, ou apenas fechar os olhos e ouvir o som ao redor. Uma chamada de atenção para si e para o outro. Uma chamada para a percepção do que está além das palavras. Uma imanência. A imanência de corpo e tempo afirma um presente em atualização por experienciar uma reorientação da percepção conduzida por uma intuição aguçada. Esse presente não é um atestado de formas fixas, mas “uma qualidade da passagem” (Manning, 2016), ou seja, o campo do processo.
Ainda, este processo é sobre corpos que se percebem, atuam em descobertas e então podem se afirmar, se sustentar frente aos convites de regeneração, reconstrução, e principalmente, de invenção movimentada e dançante de uma experiência coreográfica. Podem criar juntos refúgios e alianças para seguir, em luto ou em luta — em um mundo com crises ambientais, sanitárias e sociais, nunca foi tão importante a criação de refúgios, físicos e simbólicos (Bona, 2020; Guzzo, 2022). Refúgios para a possibilidade de um corpo que experimenta uma vida potente em sentidos, experimentações e prazeres produzidos por ele mesmo!
Um corpo que se aproxima também do “corpo vibrátil” ou “corpo pulsátil” que nos apresenta Suely Rolnik (2003). Um corpo que proporciona que estejamos “captando os sinais das forças que agitam o mundo e que provocam vibrações e efeitos no nosso corpo” (Rolnik, 2018, p. 53).
Esses sinais também se ampliam para uma concepção de forças e corpos (não só humanos) como lugar fundante na criação de existências e presenças — visíveis e invisíveis. Corpos em processo de refazimento a partir dos encontros, atentos para não reproduzir violências e processos de dominação já estabelecidos dentro das políticas de subjetividade impostas. Rolnik (2018) nos alerta que dentro do sistema capitalista colonialista neoliberal, estamos em constante risco de não enxergarmos as “transformações que acontecem nos diagramas de vetores de forças e impedindo que novas maneiras de ver, de sentir e de existir possam emergir” (Rolnik, 2018, p. 29)
Um fazer ético, que está atento aos efeitos das forças que agitam o mundo em sua condição de vivente, não ignorando aquilo que o saber-do-corpo lhe indica (Rolnik, 2018). Essa ética de escuta se faz importante na área da saúde que sempre tem foco na relação de um ou mais corpos (do próprio profissional e do paciente). É importante uma constante atenção contra a “imagem de uma conservação eterna do status quo de si e do mundo” (Rolnik, 2018, p. 66).
Não há um único jeito de fazer. A proposta desse ensaio não é lançar um manual, mas sim atentar que o corpo que dança pode produzir sentidos importantes para profissionais na área da saúde. A dança menor, o autocuidado e a hapticalidade pensadas como lugares de poesia e erotismo — também para a formação em saúde (Guzzo e Alves, 2021). De invenção de trocas e delicadezas, para corpos que experimentam variadas brutalidades cotidianas. Como também sinaliza Audre Lorde (2020) em “Poesia não é luxo”, muitas cuidadoras, ativistas e profissionais da saúde, por enfrentarem problemas tão limítrofes entre a vida e a morte, desenvolvem grande dificuldade de achar que poesia pode ser importante como prática de cuidado e de sentido. É pela poesia, pela experiência estética, pela alegria e pelo prazer que também construímos sonhos e esperanças para construir também ações de cuidado e esperança para outras pessoas. “É da poesia que nos valemos para nomear o que ainda não tem nome, e que só então pode ser pensado. Os horizontes mais longínquos das nossas esperanças e dos nossos medos são pavimentados pelos nossos poemas, esculpidos nas rochas que são nossas experiências diárias.” (Lorde, 2020, p. 47)
Para Tarcisio Almeida (2021), o termo hapticalidade tem relação com a possibilidade de explicitar o “direito ao saber-sentir”. O autor (Almeida, 2021) tece essa conclusão a partir de uma experiência educacional e formativa na área das artes e aponta que aos recusarmos fronteiras normativas e ainda socialmente não reconhecidas, é possível que apareça “uma linguagem que se dá num espaço de aprendizagem (um território existencial) que requer uma escuta de corpo inteiro (de corpo presente)” (Almeida, 2021, p. 106). Um caminho possível para encontrar também um saber-sentir-se e saber-cuidar-se.
Caminho essa de se fazer e constituir as práticas e saberes a partir dos encontros e de como eles são constituídos — entendendo que presenças visíveis e invisíveis também fazem parte dessa construção. E não há uma fórmula para definir isso, o caminho é feito em cada experiência e por cada experiência.
São inúmeras variações que constituem a possibilidade de haver uma dança menor, um gesto menor e conseguir dançar, firme e docemente, enquanto se luta. Alongar, respirar, meditar, abraçar (durante a pandemia não podemos, mas quem sabe logo), fortalecer, reunir, rebolar, sustentar, fugir, plantar, fazer roda, ouvir, silenciar e gritar. Verbos no infinitivo para serem conjugados com o corpo em ação, com o corpo presente. Não separando, como Audre Lorde (2017) indica, o saber do sentir, ou como Moten e Harney (2013) sugerem, a pele e o amor. Dancemos e vejamos onde nos leva a dança (Barry e Djordjevic, 2007, p. 133).
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MARINA SOUZA LOBO GUZZO
Marina Guzzo é artista e professora Associada da Unifesp no Campus Baixada Santista, pesquisadora do Laboratório Corpo e Arte no Instituto Saúde e Sociedade. Tem pós-doutorado pelo Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP e é mestra e doutora em Psicologia Social pela PUC-SP.
marina.guzzo@unifesp.br
https://orcid.org/0000-0002-9978-4014
AGRADECIMIENTOS
Agradeço Conrado Federici pela leitura e parceiros do Laboratório Corpo e Arte UNIFESP pela continuidade da pesquisa.
FORMATO DE CITACIÓN
Guzzo, Marina Souza Lobo (2023). “Se não posso dançar, não é minha revolução”: autocuidado e hapticalidade como práticas políticas. Quaderns de Psicologia, 25(1), e1778. https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1778
HISTORIA EDITORIAL
Recibido: 31-01-2021
1ª revisión: 03-09-2022
2ª revisión: 07-10-2022
Aceptado: 07-10-2022
Publicado: 06-03-2023
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1 Steve Paxton (1939) é uma figura importante da história da dança. Participou do Judson Dance Theatre e foi um membro fundador do grupo experimental Grand Union, em Nova Iorque. Em 1972, nomeou e começou a desenvolver a forma de dança conhecida como Contact Improvisation (Contato Improvisação).